Wednesday, December 19, 2007

Compensações


[ao som de ‘Sentado à beira do caminho’, de Roberto e Erasmo Carlos, na voz de Rosa Passos]

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Se a espera não contempla
nem suspende o que respira
Mais dias se estendem
entre palmos e demais

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foto: fragmento do bairro de Pompéia em São Paulo, por Ricardo Imaeda


Saturday, December 15, 2007

Do que ficou


‘Nada mais vai me ferir
É que eu já me acostumei
Com a estrada errada que eu segui
E com a minha própria lei
Tenho o que ficou e tenho sorte até demais
Como sei que tens também’
- Renato Russo, in ‘Andrea Doria’

E, quem sabe, pela última vez ouvi aquela canção na cena da peça-show em cartaz na cidade. Foi como recuperar pedaços de uma cerâmica quebrada, com um valor apenas pessoal. No desenho partido a sombra do presente dificulta a visão mais do que lhe dá sustento.

A estrada talvez tenha se perdido.

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Saturday, December 08, 2007

I

No caminho para El Morado, por entre o cânion do Rio Maipo, à beira da estrada as tiendas vendem fósseis para os turistas. Seriam restos de animais marinhos encontrados no alto da Cordilheira dos Andes. Como se sabe, toda essa região foi antes submersa, fazendo parte do fundo do Oceano Pacífico. No entrechoque das placas tectônicas ela se elevou, formando a cadeia de montanhas.

Imaginar fósseis como recuerdos à venda causa incômodo e provoca reflexão. Ao contrário das barracas da periferia de Lima, Peru, onde o artesanato de inspiração pré-colombiana é o destaque, aqui são remanescentes de seres vivos a atração principal. Não mais como matéria de estudo científico, mas como peças de contemplação, para lembrar da passagem por um lugar. Ossos ou partes deles, ex-orgânicos, mineralizados. Cadáveres feito coisas como marcadores de um sopro de vida em um sítio remexido depois de milhares de anos.

As montanhas da pré-cordilheira logo em frente parecem áridas, inóspitas. Mas ao longo do rio revolto os ciprestes e outras árvores contrastam com sua vivacidade. E o viajante se lembra que nesse vale florescem alguns dos vinhedos mais valorizados do país. A paisagem do aqui e agora já basta para nos confrontar com as transformações em curso. Da vida em constante mudança.

Não paro para sequer olhar para os fósseis. Eles já são outros.

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[A palavra do título deve ser compreendida como uma alusão intercultural em seus vários sentidos atravessados. Em inglês é o pronome na primeira pessoa do singular. Mas em mandarim, na sua transcrição para o alfabeto romano, significa transformação, mutação, como no clássico taoísta ‘I Ching’, o livro ou tratado das mutações]

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foto: cânion do Rio Maipo, Chile, verão de 2006/07, por Ricardo Imaeda

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Friday, November 30, 2007

Os cata-ventos do quinto andar

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Raras vezes vi as pessoas sorrirem diante de uma obra de arte contemporânea como agora. Sorrir de uma alegria verdadeira, interior. Tanto que talvez até venham a questionar se essa instalação de Ricardo Karman,‘Pneuma’, é mesmo uma obra de arte. Porque ela nem mesmo tem uma materialidade visível, já que utiliza o vento como matéria-prima. Não importa. Não é uma obra para se ver diretamente, mas para se sentir na pele. Mesmo assim, o visitante, ao usar algum dos apetrechos coloridos, todos com cata-ventos acoplados, faz com que o vento também ganhe uma expressão visual animada, lúdica, em um percurso que vem recheado de sensações de soltura e divertimento. Bolas como globos terrestres iluminados por luz negra subitamente despontam correndo na contramão. E espelhos laterais devolvem a imagem estranha, giratória, do avatar movido pelo ar em profusão. É quase uma brincadeira, ou é toda uma brincadeira, em que não é preciso pensar nada, apenas viver o momento.

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‘Pneuma’, de Ricardo Karman, está disponível para a experiência do visitante no Centro de Cultura Judaica, em Cerqueira César, São Paulo, até o dia 21 de dezembro. Nesse belo prédio, projetado por Roberto Loeb, estão em exibição outras obras interativas de engenho e inventividade, como o ‘Reconstrucidades’, do coletivo Bijari, que utiliza peças que podem ser livremente manipuladas sobre uma mesa, que projeta as imagens para uma tela. Ao contrário do ‘ReacTable’, com quem se assemelha, o produto é menos sonoro ou musical, e mais voltado ao desenho de uma urbanidade desejada.

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[O acompanhamento musical óbvio seria ‘O vento’, do mestre Dorival Caymmi, na voz de Mônica Salmaso, uma de suas intérpretes mais sensíveis. Mas a instalação de Karman inspira também outra trilha, ao sugerir uma atmosfera próxima à da canção de Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, ‘Giz’. Quem conhece a canção há de lembrar do seu caráter nostálgico, ao mesmo tempo alegre e triste, reassegurado e sereno, com seus versos:
‘Desenho toda a calçada/Acaba o giz, tem tijolo de construção/Eu rabisco o sol que a chuva apagou//Quero que saibas que me lembro/Queria até que pudesses me ver/És parte ainda do que me faz forte/E, pra ser honesto,
Só um pouquinho infeliz’]

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Tuesday, November 27, 2007














Para além dos altos e baixos existe essa pouca viagem.
Escassos embarques, cenários repetidos. O olhar condicionado. E a vizinhança do desconhecido, mas reincidente.
Nessa hora saturada contemplar é quase partir.

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foto: vista sul, a partir da Praça do Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, November 23, 2007

Do alemão quase latim

Um dos prodígios sonoros de J.S. Bach ressoa a cada nova audição de sua obra para vozes humanas. Em qualquer de suas extraordinárias cantatas, motetos ou missas, o ouvinte pode se dar conta de uma verdadeira mágica transfiguradora além do prazer da música em si. O gênio criador desfia uma sintaxe melódica que consegue limar as pontas e arestas rascantes do idioma alemão. Tal é a façanha que quem ouve chega a pensar que as peças são cantadas em latim. O texto flui com uma liquidez sem crise ou colisões. Bach parece se abastecer de outra fonte e, ao compor, verte uma natureza alterada de seu próprio idioma: mais esguia e toante. Mesmo Schubert e Schumann, em seus belos lieder, não lograriam vencer as escarpas da língua.

De Bach sempre se ganha muito. Como na cantata BWV 140, ‘Wachet auf, ruft uns die Stimme’, de frases longas, encadeadas e intensas, que celebram o casamento da alma com o salvador. Mais do que testemunhas somos envolvidos em uma sedução serena, dupla humana e angelical. Uma experiência palpável do sublime. Ao contrário dos detratores do paraíso (os que o condenam como aborrecido e entediante), Bach nos oferece uma vivência de descobertas e vibrações a cada nova nota.
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Quem estiver em São Paulo tem a oportunidade de assistir ao concerto regido pelo maestro Roberto de Regina, com o Coral Paulistano e solistas da Orquestra Sinfônica Municipal, dia 24, no Teatro Municipal. O programa inclui três cantatas (BWV 4, BWV 131 e BWV 140) e o moteto Singet dem Hern.

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:foto: prédio do Instituto Goethe, antes ocupado por um convento, nos altos da rua Lisboa, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Tuesday, November 20, 2007

Acaso fluir


Não, não é uma luta. Nem algo assim tramado na tensão de um confronto. Se sobreviveram poderá ter sido não por esforço ou argúcia, mas por um acaso. Um sem razão, sem glória, confluência de dez mil fatores muito diferentes entre si, apontando em direções opostas, mas em condensação justo aqui.

Ao contrário do que gostam de clamar os defensores do padrão guerra, encarar a vida como um acaso é um jeito de desonerar ombros e palmas, evitar sofrimentos desnecessários. Mais que tudo, repõe a humildade de reconhecer a limitação do próprio espectro: o desconhecimento do que vem, porque multiplamente condicionado, porque mistério.

O acaso também faz par com o jogo, o brincar, o improviso. Um passeio sem roteiro muito elaborado, aberto às surpresas de cada passo.

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[ao som de ‘Greensleeves’, de domínio tradicional, na inspirada e multifária interpretação de Fortuna e o Coro dos Monges Beneditinos de São Paulo]
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foto: ninféias do Jardim Botânico, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Saturday, November 17, 2007

como rodo, sem remos










Os pés se molham dentro dos sapatos cada vez mais molhados. Logo sente as ruas escorrerem por entre seus dedos agora que a chuva parece não terminar. E lhe pesam alagados mais soltos que dantes. Ao deslizar sobre as calçadas é sobre as nuvens que lhe escapam o que pensava sobre altos e baixos em que parece escorrer desequilibrado. Mais se molham os pés, liquefazendo na impossibilidade de se livrar dos sapatos, na fluência do que lhe escapa, aos poucos, na correnteza de que não consegue se apartar.









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fotos: cachoeira de Deus, em Penedo, por Ricardo Imaeda

Monday, November 12, 2007

Arremesso livre

Às vezes é mais reconfortante sentir-se suspenso no tempo-espaço do que pisar firme no chão de uma certeza predatória. Melhor flutuar na vaga que chafurdar na lama. Errar de pára-quedas ao invés de guiar com crachá.

Nesse roteiro de segunda-feira os jargões não isolam mais. São ecos para eles mesmos. Na sensaboria que lhes basta, na superfície que lhes faina, da da da.

Mal se percebem sem fios. Que lhes servem e se servem. Compram amuletos de prosperidade para sorrir e não serem tentados a duvidar. Ainda conseguiriam se o tropeço os lançasse a um soco de ar?

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foto: avenida Ipiranga, centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Wednesday, November 07, 2007

Na solidez do sangue

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[ao som de ‘The unfolding’, de e com a assombrosa voz de Lisa Gerrard]


Cenas triviais se transformam em parábolas, o aparente vagar no trânsito sempre congestionado revela uma tensão diferente. Apesar da sensação de proximidade da locação, alguma coisa se fratura quando o filme acaba. Cabem desajustes, cabe o gosto da estranheza. Em ‘A Via Láctea’, a São Paulo de Lina Chamie poderia ser qualquer outra grande metrópole. Ela parece ser uma ponte quebrada. Separa e repete as ações, pontos de vista, referências. E na polifonia, poliartística, mesmo assim, é a palavra a condutora, muitas vezes artificial, do percurso que se finda. Quem abrirá caminho para ambulâncias se não se perder na leitura de versos? Que gesto não estará significado quando apenas se começa a desenhar?

O que parece tão trivial ganhará outro estatuto se revestido de citações literárias ou musicais? Sedimentará camadas insuspeitas em transferências para novos territórios? Ou chegará àquele beco da cidade, entre mercados e solidões, na insuficiência do pulso, na solidez do sangue?

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Assista a ‘A Via Láctea’, de Lina Chamie, qualquer que seja sua cidade e não tente reconstruir nada

[Para muitos o filme permite um primeiro contato com o belo poema de Mário Chamie, ‘Chuva interior’]

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Saturday, November 03, 2007

Libera me, Domine

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Noite de Finados, Teatro Municipal de São Paulo. Não imaginaria tanta gente em meio ao fim de semana prolongado. Quantos terão vindo para ouvir o ‘Réquiem’ de Fauré pela primeira vez? Apesar do tema parecer imediatamente afim à data, não será de morte que a audiência se envolverá. Desde as primeiras notas a interpretação do Coral Paulistano parece querer dizer que é de libertação que a música trata. A torrente serena de um partir sem luta. Nas vozes e nos instrumentos desembaralham os laços do fincar na terra.

Se é possível ainda respirar, deixemos que a atmosfera se esgote na contemplação da Arte.

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[O ‘Réquiem’, op. 48, de Gabriel Fauré está disponível em diversas gravações. Uma das mais belas é a do London Musici, com o Trinity Choir College, Cambridge, regência de Richard Marlow, e Camila Otaki (soprano) e Mark Griffiths (barítono), pela Conifer Classics]

Thursday, November 01, 2007

empuxo


É um vaivém

O corpo que se levou

Para o poema que se traz

Sunday, October 21, 2007

Soçobrando

[ao som do canto das baleias]

Sub mares, sobre mares
Sub mares, sobre mares
Vem ouvir
Vai feito onda, parte
Só sobrando
sua voz

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foto: oceano Pacífico a partir de Viña del Mar, Chile, por Ricardo Imaeda
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Wednesday, October 17, 2007

sem rodas


[ao som de ‘Running to stand still’, de U2]

Porque os passos se alongam entre perdas e porvires.

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Thursday, October 11, 2007

Esconde-esconde

Ele chegou tarde ao jogo e procura qualquer rastro que o leve até aqueles que se escondem. Aguça os sentidos, reconstrói mentalmente mapas, erra sem lógica pelos espaços de possibilidades gastas. Devem ter partido de vez, imagina. Não há mais sinais de retorno; o sol diminui.

Era apenas uma brincadeira, não diziam? Para distrair dessa rotina de pressões, corrida de ratos. Um alívio básico.

Talvez já tivessem brincado assim muitas vezes. Talvez todos os dias. Saíam e voltavam, descobertos ou vitoriosos. Mas agora parecem abandonar o campo sem mais. Desertam do peso e do escape. Na ausência se fazem sentir como nunca. Finalmente aparecem em toda a clareza.

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foto: gruta no Parque da Luz, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, October 07, 2007

Sem sombra, sem reflexo

Às vezes um cadáver é melhor que um fantasma.
Melhor: mais concreto, mais presente. Torna a companhia verdadeira no consumir das velas. Embora pareça final traz consigo todos os tempos. É um lembrete, um aviso, uma promessa. Uma vida a ponto de começar.

O fantasma, ao contrário, é uma flor de plástico: repete-se a cada aparição, preso em uma forma fixa. Devolve o mesmo olhar de quem o espreita. Não cria sombras, não se transforma.

Às vezes ambos parecem ganhar vulto nas incertezas da próxima esquina. Em um assombro conjunto. Na história nova, igual, que se recorta.

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[ao som de ‘Swing low sweet chariot’ (domínio público), na voz extraordinária de Paul Robeson]
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foto: detalhe do Memorial do Imigrante, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Thursday, October 04, 2007

Alta tensão

[ao som de ‘Hymn of the big wheel’, de G. Marshall, A. Vowles, R. del Naja, N. Cherry e H. Andy, com Massive Attack]

Entre dois mundos caminho vagante
O corre-corre das coisas criadas
E o embaço da janela estanque
A roda ilusória em que luzem valores
E o solo único que mal reconheço.
Quando tenho que parar os dois parecem se unir
Em um choque
que por mim percorre

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foto: detalhe do parque Alfredo Volpi, em São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Sunday, September 30, 2007

Sobre cordas

[ao som de ‘Let me fall’, de J. Corcoran e J. Benoit, do repertório do Cirque du Soleil]

Ao longo do trajeto, em boa parte do tempo, ele parece estar confiante. O corpo está só, mas sente o ar que o atravessa como parte de si mesmo. Estão todos distantes e, entanto, guarda cada momento vivido com eles como relíquia. Também já compõem essa unidade. Assim gostaria de parar.

Mas nirvana (cessação) ainda demora. Rapidamente as pernas tremem e um fio de medo o perfura em quase queda.

Essa lâmina sobre o qual caminha é cruzada por ventos de tempestade com freqüência. Às vezes a paisagem o distrai. Outras, a estreiteza do chão o preocupa. E quando olha para si mesmo é o espaço vazio entre eles que o sustenta e desequilibra.

Sustenta e desequilibra. Como a mente e suas projeções. Nesse percurso que quase se apaga no balanço do ar.

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foto: vista aérea parcial de Atibaia, estado de São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Wednesday, September 26, 2007

O molho da salada

Quem não quer se resignar aos temperos prontos e não dispõe do saber de especialista tem de enfrentar o enigma das proporções e quantidades na hora de preparar o molho para a salada. Cada vez é uma nova história. Não parece haver porta para automatismo nem medidas fechadas que assegurem o sabor pretendido.

É um ato de solidão rápida. Ela se desfaz na extensão do gesto que inclina os vidros e verte líquidos, quando se dissolve no desejo comum de acertar sem saber como. Uma lembrança de poções alquímicas, alguma sorte de principiante.

Se mistura muito de tradições herdadas ou copiadas pela observação, a combinação de ingredientes também expressa o estilo e o momento de cada um. De uma forma quase fortuita, mas incisiva. Contenção, esbanjamento; acidez, suavidade; respingos, lagos.

Mais do que a escolha das verduras o preparo do tempero recolhe o drama de unir dois pontos: o que é conhecido, se gosta, e o que pode se perder, porque sujeito aos imprevistos, ao acaso ou aos abandonos de si mesmo.

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Sunday, September 23, 2007

Um

Sobre o cascalho os passos seguem como a trilha, sem um propósito definido. Sentir as pedras basta por si. Cortante e redondo, áspero, doce. Andar não para onde, mas enquanto. Enquanto as árvores simplesmente estão. E a respiração está como não costuma ser percebida.

Caminho, pedras, árvores, respiração se estendem como um só.
São um só.

[ao som de ‘Estrela, estrela’, de e com Vitor Ramil]

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foto: pinheiros e detalhe do templo zen budista Zu Lai, Cotia, por Ricardo Imaeda

Thursday, September 20, 2007

Outono ao norte

Há os que estão de partida. Para passeio ou algum tipo de iniciação. Levam uma bagagem difícil, feita de biografias cruzadas com muitos nós e laços quebrados. Entre os planos de viagem talvez flanem trechos de poemas que ficaram por concluir. Ainda guardam uma sonoridade de canção, respiros de espera, desejos de volta.

Em algum ponto no caminho de saída talvez reencontrem retratos de outras viagens. Um pouco espelho, um pouco memória. Serão companhia. Novas paisagens podem lhes impressionar e virar outras molduras. E, então, em alguma estação, de alguma cidade ao norte, entre passantes apressados e turistas indecisos, reconhecerão aquele olhar liberto, entre plataformas, bilhetes e possibilidades ainda mais encantadoras.

[para Márcia Albuquerque: boa viagem; que as descobertas sejam inspiradoras]

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foto: estação ferroviária no Memorial do Imigrante, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, September 16, 2007

olhar fixo

Como se fosse o último dia sobre a Terra.
Espera ou incerteza.
O que pode atemorizar mais?
O que adensa os passos em torno de perguntas em círculos? O que não divide nem reduz? O que não se desfaz?

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foto: a partir da Praça do Pôr do Sol, Alto de Pinheiros, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, September 10, 2007

O desespero e a amora

Domingos são dias que embaralham percepções. Parecem seguir um ritmo de escoamento diferente. Mais rápido ou devagar, não importa: confundem o passageiro ao dilatar os pontos-limite para cada atividade do dia. Como se não houvesse mais fronteiras necessárias, como se tudo fosse contingente. Parecem deixar essa liberdade para quem quiser ousar, desviar passos, experimentar. Mas, talvez pela brevidade da promessa, também anunciam o final do período dessa licença. Alarga-se o mundo, que se ameaça fechar de novo logo mais.

O que fazer nessas horas? Para onde ir? A pressa incontida desenha freios quando não se quer. Uma paralisia de repetir sempre o mesmo, rotinas de um mesmo dia. E um outro fosso, talvez mais largo ou fundo: um pensar em si sem molduras fixas, sem artifícios de projetos ou lembretes de infância: um redemoinho personalizado com aceleração crescente e paisagem calma para contrastar. Como se fosse correr cada hora em uma direção, sob mapas autodestrutivos, no desejo único de não estar mais ali no momento seguinte. Apenas sair.

Sentado em um banco no Parque da Água Branca, em São Paulo, noto o calor deixar cada vez mais espaço para o vento fresco. Os patos caminham livres pelas alamedas e o canto de outras aves pontua o fim de tarde. Sinto o baque de uma amora sobre o ombro esquerdo. A fruta desliza e deixa uma mancha arroxeada na camiseta branca. A amora cai ao chão e me faz levantar.

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Thursday, September 06, 2007

Vazio em flor

Em um dos seus belos textos, ‘As flores e o lixo’, o mestre Thich Nhat Hanh reflete sobre a precariedade de apreensão do real a partir de conceitos como limpeza e sujeira, pureza e imundície. Um conhecimento mediado por palavras ou idéias que estão continuamente classificando e julgando o que passa diante do observador. Reflete também sobre a natureza interconectada de todos os seres. Assim, vendo profundamente uma flor é possível ver também o lixo em que ela se transformará alguns dias depois. Ela é flor e todos os elementos não-flor, lixo inclusive, aqui e agora mesmo. Vendo profundamente o lixo, é possível ver a flor em que ele poderá se transformar logo mais. Ele é lixo e todos os elementos não-lixo. Cada ser contém todos os demais. É vazio de uma essência própria porque é constituído por todas as coisas que não são ele. E, por isso mesmo, está relacionado a todo o restante do universo.

‘To see a World in a Grain of Sand
And a Heaven in a Wild Flower
Hold infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour’
- William Blake

[‘Ver um Mundo em um Grão de Areia
E um Céu em uma Flor Selvagem
Segurar o infinito na palma de sua mão
E a Eternidade em uma hora’]

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Saturday, September 01, 2007

e só: palavras


... nos passos que contou até se perder com os números e outros vindo da direção oposta. Passos borrados pela indefinição do olhar, luz cadente, refluxo de palavras. Que o instabilizam a cada vez que pára. E para continuar inventa novas, sem significado imediato a não ser andar. Pelos mesmos trajetos, não importa, quase espelhos, em que jamais se perdeu. E retoma as contas, na claridade em que reconhece os passos, sem pressa, em que se vai...

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[ao som de ‘É doce morrer no mar’, de e com Dorival Caymmi
... e de ‘Preyed Upon’, de e com Tanita Tikaram]]
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foto: detalhe da avenida Paulista, São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Saturday, August 25, 2007

Desalinho


[ao som de ‘Missing’, de Vangelis]

Venha ver o pôr do sol dezenas de anos depois. Outra vida, outro chão. Muito mais pessoas apressadas na calçada sem esbarrar. Mas ainda se pode ouvir o sino nas horas cardeais. Assim como sua voz não soterrada. Seria um pedido de socorro?

Então me curvaria para melhor entender a humildade do gesto. Aos pés da cidade encontraria um calor de atritos, de um sol asfaltado, na tarde que passa tarde ao ouvir sua voz perdida entre tantas outras deixadas na extensão da linha.

Não precisaria verter qualquer sentido agora que ela escorre de novo, na altura de uma busca ou na eloqüência de um abandono.

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foto: painel no muro lateral da Igreja do Calvário, Pinheiros, São Paulo

Monday, August 20, 2007

Agora e na hora

Mais do que um equilíbrio entre as demandas do presente e as expectativas do futuro o que parece atormentar o caminhante é a incerteza sobre suas próprias reservas de energia para enfrentar a viagem. Ele parece conter menos, desaprendeu mais, enquanto as falhas se aprofundam e cada vez mais a trilha se torna irreconhecível. Os dias se encurtam. Nem mesmo as leituras podem oferecer algum conforto agora que os dormentes por que atravessa começam a ceder. São de um outro tempo, sabe. Como o fôlego que lhe sustenta e passa.

Olha por ele.
E com ele vai.

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foto: detalhe do Ohtake Cultural, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

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Wednesday, August 15, 2007

blakeana

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Ao final da página talvez uma canção de inocência
Depois de tanta seca, quase rupturas
Um olhar de novato estréia
E move pontes e livros inteiros

Cante, ainda que baixo, rouco, inapto
Repetida vez
Que esqueça para assim começar

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Thursday, August 09, 2007

Com quantos ciclos

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Parece que foi em outra encarnação. Esse é o sentimento quando se revisita algum lugar que ficou abandonado nas mudanças de rotina. Alguma outra vida, se é que existe. O velho mercado, a igreja pequena mas gótica, a escola. Resistem ao tempo, continuam. E devem testemunhar finais e recomeços de tantas mais vidas. Voltar a esses lugares é como rever fotos ou rascunhos de textos. É deixar emergir aquela pessoa que estará sempre ali, a caminho de qualquer futuro, lançando olhares sem repouso, depois.

Não será, portanto, uma outra encarnação, mas a mesma envelhecida juventude. De uma insegurança que a faz retornar sempre, com as mesmas sensações.

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Thursday, August 02, 2007

Os vários sentidos do desconhecido

Uma das belas canções de Israel Kamakawiwo’ole, ‘Kaulana Kawaihae’ é escrita em hawaiiano. Na grafia as palavras parecem segredos. Mas quando ouvidas soam quase vizinhas. A melodia ajuda a encurtar caminhos e a interpretação conjuga outros componentes de significado. O mistério se desfaz em parte.

Destinos nunca antes percorridos também se conformam a essa gramática. Mesmo retirando o chão do visitante apresentam pistas e rastros de lugares já partilhados. Algo permanece na mudança de cenários. Uma escada, janelas, luminárias. Às vezes apenas uma sensação de chegada em atraso.

Será sempre assim aos poucos, depois? Virá oblíquo, desafinado? Tanta matéria se perde em não saber. E o que se agarra na vazante parece difícil demais de se assimilar. Mas, como na música, novos desconhecidos ajudam a tecer, na falta e na aproximação, um gosto diverso dos dias que se repetem.

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foto: vitrais do Museu de Zoologia da USP, Ipiranga, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, July 29, 2007

Pelo caminho

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Pouco se sabe do percurso que vem. Só se tem como certo o meio pelo qual se tentará efetuar a travessia: uma bicicleta. Assim a jornada começa e continua. A paisagem por vezes é bonita e o viajante pode se esquecer dos riscos de momentos atrás. Outros estão por vir. Ele contempla e hesita. Sente alívio como se estivesse livre de todos os compromissos. Mas também estremece diante dos baques que se repetem com alguma regularidade. Nessas horas o peso do veículo cai sobre seus ombros.

Manter a bicicleta rodando, equilibrar-se sobre ela, parece mais difícil do que se pode imaginar. Requer uma alimentação constante, um olhar de confiança ao longo da pista transformando-se em destroços. Andar por agora, andar para depois. Não deixar cair o movimento, parar e apreciar o horizonte.

Todos os tempos circulam na incerteza das rodas. Quem vai junto talvez não saiba. Até quando o que vem deixa de ser.

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Saturday, July 21, 2007

Um reencontro

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E vem o dia em que volta a sensação de desamparo. As coisas quebradas, ninguém por perto, não saber como sair dessa. Ao mesmo tempo estanque e passa sem permitir um desafogo ao menos. Tudo lembra desse passado. Talvez não mais, se algum curativo, a espera de um pai.

Nem a luz ajuda. No meio de um inverno estranho, o dia se encurta mais. Será possível chegar ao fim da travessia?

Agora é cada vez mais a sensação desse desamparo.

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Saturday, July 14, 2007

A hora certa

Um poema é como pão de queijo ou café. Entrega seu melhor sabor no instante em que fica pronto. Mas como saber quando está no ponto?

E ele perde lento o vapor que o anima. A força que retira da matéria reverte às suas mãos, queima. Se o desperta também faz derivar.

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Monday, July 09, 2007

Monday, July 02, 2007

Pacífico-Atlântico


Ao se entrar na sala um sensor aciona o mecanismo que faz girar o imenso globo terrestre. É escuro e o barulho de máquinas faz supor que estamos dentro de um navio. Pouco a pouco outros elementos se distinguem. Agora parece um porto. Malas e caixas atulhadas deixam ver que vários mundos pessoais estão de mudança. A paisagem é sombria e desalentadora, mas também guarda luz para traços futuros. Afinal, nada ali parece feito para repouso ou fim. É apenas um momento de passagem. Uma plataforma de abandonos alongada pela viagem, mas pronta para ela mesma se extinguir.

Alguns dias são assim. Desembarques forçados sem clareza ou vontade. E trajetos sem avisos, em direções sem saber.

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foto: detalhe da Sala de Navegação, Memorial do Imigrante, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, June 27, 2007

A casa à beira de um mundo desconhecido


Ele traz na bagagem uma câmara fotográfica e algumas idéias vagas sobre o passado. Ao desembarcar do trem puxado pela maria-fumaça sente uma familiaridade com aquela enorme construção. Era como se já tivesse morado ali, tempos de precariedade e mudança. Um continente novo, de terras amplas e palavras difíceis de pronunciar. Esse era o lugar por onde passaram tantos imigrantes de origens longínquas, biografias inteiramente alteradas na incerteza dos dias e anos.

Talvez se veja ainda como um imigrante nessa visita. Cada aposento lhe causa estranheza e medo. Nas peças de mobília e objetos de uso pessoal parece estar ainda irresolvida a disputa entre forças de partida e deriva. Eles traem um apego querendo não ficar. Como se tivessem impresso para hoje o toque tenso das mãos que a eles um dia se agarraram. Os passos relentam e pesam. Nesta casa muitas vidas devem ter se dividido. Para não mais se recompor.

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foto: Memorial [antes Hospedaria] dos Imigrantes, Mooca, São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Tuesday, June 19, 2007

Até onde?

[ao som de ‘Movimento dos barcos’, de J. Macalé e Capinam, na voz de Toni Platão]

Em sua busca chegou ao outro lado do continente. Até às águas geladas do Pacífico. Superou os obstáculos da cordilheira e do idioma para provar para si mesmo que continuava vivo na sua promessa. Por todo o caminho encontrou faces generosas, ouvidos atentos à sua pronúncia e sentidos. E paisagens de National Geographic. Mas o objeto de sua procura deveria estar mais adiante. Sempre mais adiante. Subiu um dos cerros mais charmosos da cidade para melhor contemplar os caminhos, as possibilidades. Depois do nevoeiro, o infinito. Não estaria na terra o que sempre quis ter. Sua partida era apenas um início.

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foto: baía e porto de Valparaíso, a partir do Cerro Concepción, por Ricardo Imaeda

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Thursday, June 14, 2007

Sabores artificiais

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O rapaz entra no ônibus e começa a falar seu texto decorado. Cada nova frase sai aos borbotões, tão automática quanto linear. Não há diferença nem vírgula, ênfase ou intenção. Tudo soa a impostura. Mas é assim, na armadura desse papel, que ele cumpre seu rito.

Se há incômodo, também redenção pela legitimidade do trabalho honesto. Todos sofrem por uma informalidade forçada, intrometida, sem licença ou qualquer esboço de convite. Informalidade do serviço na formalidade do discurso na informalidade da chegada. Parece ainda pior no fardo de quem vende, subindo e descendo sucessivos degraus, atropelos, corridas sem freio, quase batidas.

E então vêm os produtos: balas coloridas, gostosas, a preços de ocasião. As cores são ainda mais vivas do que naturais. E sabores: limão, abacaxi, morango. Nem dá para lembrar de todos. Mas não há muitas ilusões para quem compra, mesmo porque o que se quer é a sensação do doce. Até parece limão. Quem se distrair, quando se distrair, terá uma satisfação de limão. Entre um momento e outro, do saber e do acreditar, haverá paisagens na janela, cansaço, muitas falas cortadas, abafamento, outros vendedores.

Os sabores artificiais são pequenos disfarces, dentro dos quais tantos se encontram e se contentam. Lembram dos verdadeiros e estão mais ao alcance. Quase sempre são mais baratos. Enganam sem ferir. E fazem crer no que se sabe não valer.

[Sabores artificiais sobrevivem e se realimentam em crenças políticas e religiosas, relações organizacionais e familiares, academias e tantos outros lugares]


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Friday, June 08, 2007

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[ao som de ‘Heaven knows I’m miserable now’ (The Smiths)]

Não é Londres mas sempre oferece a possibilidade do encontro com diferentes. De diversas cores, palavras desconhecidas. Como uma plataforma de embarque, qualquer coisa assim. Ou banco de parque, museu, café. Em um dia que a vida da cidade permite andar mais lento o olhar também pode vagar.

Dura pouco, é verdade. O tempo de uma caminhada. Talvez nem isso. Algumas vezes basta piscar os olhos e não está mais lá.

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Friday, June 01, 2007

O que esfria

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A chuva veio com vontade. Com quase o mesmo peso da mala que ele suspende pelas ruas em mudança. Mas os golpes da água não o amolecem mais. Pode chover o que falta, inundar o que sobra e não terá retorno. Já as roupas esfriam enquanto atravessa as poças entre os sobreviventes da noite. É por instinto que se move. Faz continuar a viagem mal começada.

Veio com vontade à estação em que embarca no ônibus que partirá com chuva ou lua cheia. O barulho das conversas parece um coro em harmonia com os restos que atiça e remói enquanto procura se secar. Tanta dedicação, todo desperdício. Nove anos de partilha reduzidos a poucas frases fixas, que se repetem na cabeça ao ritmo dos esguichos de água contra a janela na espera da saída.

A vontade vai com ele, ônibus, chuva. É a memória que a move. Mal parte, lança planos de voltar. Só as roupas esfriam em seu corpo.

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[ao som de ‘Rainy night in Georgia’, de White , na voz de Randy Crawford]

Saturday, May 26, 2007

Um lugar para vencer o tempo



Este é o local em que combinou a despedida. Bem a seu gosto, um dos marcos arquitetônicos da cidade. Foi por muito tempo cenário de suas descobertas, onde conheceu tanta gente de sobrevida curta. Enquanto espera curva seu olhar para os detalhes que antes não pareciam valer. Quantos anos percorreu esse mesmo trajeto com outros protagonistas em mente?

‘A vida acaba um pouco todo dia’, na canção de Dolores Duran. Feito histórias construídas à força de vontade, em pistas de mão única. Sem relevo, sem resposta.

Mas o lugar toma conta. E parece alongar esse dia.

Sunday, May 20, 2007

No ar

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Sempre quis entender o fascínio que os malabares exercem sobre tanta gente. Tem aumentado muito o número de praticantes por recreação ou como meio de vida nos cruzamentos das avenidas. Às vezes são pinos; outras vezes, bolas. Até tochas de fogo. Mas o princípio e a engrenagem são os mesmos. As peças descrevem um movimento circular. Em cada mão uma unidade e, livre no espaço, pelo menos uma outra, invariavelmente o foco de nossa observação mais aguda. O objetivo é manter tudo girando sem que o movimento cesse ou alguma peça caia ao chão.

Os gestos lembram Shiva, segurando fogo em suas mãos, no centro e nas bordas da mandala da vida.


O praticante, ao colocar em marcha o mecanismo, brinca com a metáfora, como um deus ex-machina. Está ao mesmo tempo no centro do círculo – como parte do processo – e fora – como observador. Dele nasce o impulso, que o requisita como um mero dispositivo de realimentação. Ele é a roda e nele são todas as peças. Sua atenção tem de estar em todos os pontos, ao mesmo tempo, sem descuidar de nenhum. Ele medita.
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[versão revista de texto publicado no blog khi.livejournal.com há mais de dois anos]

Sunday, May 13, 2007

Um ano depois

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Escrever tem sido não apenas uma forma de compreender, mas uma ponte para encontrar novos amigos, ainda que à distância. De recuperar um laço de significado no abandono do que resta solitário, entre mundos quebra-cabeças, dissolvendo-se em velocidade e indiferença.

Um ano se vai. E o caminho ainda parece continuar.

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Wednesday, May 09, 2007

Malflex

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No mundo dualista da ficção os personagens maus são dotados de uma flexibilidade extraordinariamente expandida. Não apenas do ponto de vista moral mas, inclusive, no que se refere ao aspecto físico, corporal. Eles parecem elásticos, com enorme desenvoltura e facilidade de movimentar todos os músculos e articulações. Alguns, como a menina possuída de ‘O Exorcista’, chegam a girar a cabeça a 180º. O que será que isso quer dizer? Estariam condenados os bons a uma rigidez tumular?

A capacidade de alongamento dos malvados pode traduzir simbolicamente a desconsideração e o desprezo às barreiras – naturais, institucionais, quaisquer. Nos seus gestos eles se mostram assim maleáveis como sujeitos informes. Não se estruturam nem cabem. Por isso mesmo parecem sempre se retorcer. E envolver (os outros). Estão a cada momento prontos para escapar.

Quem sofre com os exercícios para ganhar mobilidade talvez ache tudo isso um delirio, contraditório com a idéia da força contraposta à sutileza do maleável. Mas não sentirá uma pontada de estranho poder quando finalmente conseguir curvar o que antes parecia tão duro e retilíneo?

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Saturday, May 05, 2007

Sem saber, qualquer vez

[para ler ao som de ‘Firmamento’, de H.Lawes,W.Foster, versão de Lazão, Toni Garrido, na belíssima voz de Eliana Printes]

Alguns lugares, algumas pessoas parecem trazer consigo um rastro de novidade. São depositários de surpresas, que se revelam quando pouco se espera, em alguma guinada, outro ângulo. Parecem nos fazer olhar para as coisas como se fosse pela primeira vez. Um frescor sem resíduos de influências, pátinas de juízos de valor ou qualquer prévio saber. Neles existe uma abertura para o que se transforma. Como se as quedas não trabalhassem a dor; o desconhecido, as ameaças.

Olhar pela primeira vez devolve um sentido de inocência ao cansado andarilho. Ajuda nessa hora passada ao que perdeu a fé em qualquer destinatário. Substitui o distante pelo imediato, ali na sua frente, quase palpável, à disposição para seu presente.

[Para você que não sabe nada, e nada sabe de você]

Tuesday, May 01, 2007

Algum espanto

Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz, São Paulo. Na fila para entrar o menino pergunta para a mãe o que existe lá dentro, se tem tapete vermelho, outras coisas mais. Não sei se ele se decepcionará ou o que ele captará de todas aquelas formas de expor algo tão imaterial como um idioma. E o que ele levará da mostra sobre Clarice Lispector. Talvez seja ainda inalcançável a ele o caudaloso e ígneo universo da escritora. Mas em uma das salas mais concorridas – de relicários – poderia começar a balançar alguma resposta. Em uma caixa branca, que contém uma foto algo abstrata, sobre o vidro transparente está inscrita uma frase de ‘A maçã no escuro’:

‘E um modo indireto de entender é achar bonito’

Mais adiante, na sala de infinitas gavetas, alguém pode encontrar duas páginas iniciais de um livro que se chamaria ‘Objeto Gritante’, depois convertido para ‘Água Viva’. Nelas algumas anotações-lembretes-guias que caem como tal para qualquer um que se envolve com a escrita:

‘Escrever sem prêmio’ ... ‘Abolir a crítica que seca tudo’

Alguns visitantes anotam frases, têm um primeiro contato com a escritora, confirmam o que sempre pensavam, sentem talvez vontade de conhecer mais, se espantam. É o espanto talvez o que ela buscou iluminar.

Tuesday, April 24, 2007

Respirar e ouvir

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Imagino que cada um deva ter um instrumento musical com que mais se afina. Aquele que toca a alma quando ouvido mesmo ao longe, ou em meio à mais profunda crise existencial. Que gostaria de aprender a tocar de forma tentativa, amadora. Mais para senti-lo perto nas notas extraídas a muito custo, tremidas.

Quantas vezes não terei ensaiado me aproximar mais do violoncelo para tocar aquela canção do passado? Ou buscado gravações que ressaltassem o som grave e melancólico de suas cordas? Em um celo cabe uma vida de procuras e um dia de encontros.

Se não é possível tocar que seja presente ouvir. ‘The essential Yo Yo Ma’ traz uma compilação da maestria desse músico que expande as fronteiras do violoncelo para muito além do clássico. Mesmo em um tema composto para outro instrumento, o ‘Gabriel’s oboe’, de Ennio Morricone, Yo Yo Ma convida a ouvir como se fosse pela primeira vez a música de um outono interior. Como se a voz do instrumento nascesse não da fricção do arco na tensão das cordas, mas da respiração do artista, de sua matéria sensível trazida à luz.

Friday, April 20, 2007

1 h 59 min

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É como se viajasse em um ônibus de dois andares. A maior parte do tempo no andar de baixo, atarefado, em constante movimento, olhando para todas as direções, enquanto ele roda para um destino desconhecido. Vez outra, sobe ao andar de cima, de onde as questões do dia-a-dia perdem a gravidade, na desaceleração que as verdades mais profundas impõem. De lá a jornada parece menos turva e por isso pode querer continuar, mas o passageiro se emaranha mais e mais no enevoado do térreo que, afinal, é o que o sustenta. Ou pode ser seduzido pela paixão do salto, um soltar mais largo que toda a superfície em que trafega quase insano.

Esse ônibus não tem paradas. Algumas vistas confortam, consonam, conformam. Permitem respiros que o fazem até mesmo viajar em outros terrenos, que o divertem, e o animam a seguir no itinerário.

Sua passagem, sente, já teria sido compensada por essas experiências. Agora seria o momento de forçar uma saída. Começa a pensar no lugar certo em que o abandonaria. E é quando as paisagens que fita se amontoam em um painel de familiaridades. Aquelas mesmas ruas e situações. Aquilo lhe dá um enjôo, um cansaço. Não sabe mais o que fazer. Mas continua.

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Monday, April 16, 2007

Agora é cedo



Se perder aquele ônibus
Um mundo novo irá se abrir
Nesse lado da cidade em que as voltas
Tardam a ceder

Monday, April 09, 2007

Nem quando estranhos

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Faz muito tempo que não o vejo e fará ainda mais depois de, se, o reencontrar algum dia. Não é a vida corrida nem os compromissos com tudo o que é instituição que o afastam. Mas essa covardia, essa acomodação à mediocridade, engolfada em doses módicas, caduciformes, manhã, tarde, noite. Fará mais tempo depois porque se arrependerá de ter cedido a uma curiosidade mórbida de conferir como o tempo teria desgastado a superfície e arruinado o interior. Assim, a ausência se alongará ao ponto do esquecimento que, zerando as coisas, permitirá que você me encontre ao acaso, como desconhecido, e passará despercebido, indiferente, rumo a... Não o reconhecerei da mesma forma, disperso entre os passos de antes e nada mais, em paralelos distantes, quem se importa?
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Friday, April 06, 2007

Pelas ruas sem calçada

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Alphaville, Barueri/Santana do Parnaíba. Aqui no exterior existe uma outra vida. Não parece. Afinal, o idioma é o mesmo, a moeda também, os usos e costumes parecem similares. Mas a paisagem destoa do que se conhece no país de origem. Não pela presença mais expressiva de plantas ou casas de padrão elevado. O que indica a distância é um sentido de homogeneidade das pessoas. Nada de desigualdades gritantes, extremos incongruentes convivendo lado a lado. A placidez em seu lugar.

Ruma-se por uma estrada nacional, que atravessa outros territórios nativos. E, entanto, lá se afigura essa ilha. Tão fora de tudo tão perto.

Neste estrangeiro não ensaio conhecer. Nem descobrir ou encontrar. Alguma coisa aqui ficou em outro plano. Em outra vida.

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Wednesday, April 04, 2007

Em liquidação

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O passado nunca foi glorioso. É apenas o distanciamento que cria um efeito de vitrine. E o caldo emocional engrossa mais o apetite em tempos de aridez brava.

Se lembrar conforta, quantos retornos compõem um dia bem aventurado?

As vitrines sugerem um recorte iluminado, drenado de afetos próprios e, por isso, receptivo a qualquer outra vontade. Transplantes externos agarrados com a força que resta.

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Friday, March 30, 2007

Sem mesmo ser


Foi um convite do pai: um passeio. Fato raro. Por isso mesmo desconfiou que havia alguma razão encoberta, alguma revelação dramática a se materializar na conversa. Com o espírito assim preparado caminhou sempre meio passo atrás. Talvez não fosse apenas o excesso de trabalho que o afastava. Nem mesmo os anos de estudo que o levaram tão longe na mesma casa. Mas algum segredo. Seu silêncio gotejava sem estancar.

Ainda vasculha as trilhas por que passaram em busca daquelas palavras.

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[ao som de ‘Até quem sabe’, de João Donato e Lysias Enio, na extraordinária voz de Rosa Passos:

‘agora vou pra onde for sem mais você
sem me querer, sem mesmo ser, sem me entender
... vou me perder pela cidade
até um dia, até talvez, até quem sabe
...até você sem fantasia, sem mais saudade’]

Wednesday, March 28, 2007

Bons lazeres

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Cada qual pode extrair lições de auto-ajuda ou bem-viver das mais improváveis fontes. De histórias em quadrinhos a bilhetes em biscoitos da sorte. Mas também de onde mais se espera: dos livros de sabedoria. É verdade que eles às (muitas) vezes podem ser desconcertantes, principalmente quando vêm de contextos sociais e históricos muito distantes. Ao ler Lie-Zi me deparo com a seguinte recomendação:

‘...Dessa forma, nem pobreza nem prosperidade são desejáveis. Então, que é preciso desejar? Uma vida alegre com horas de lazer, pois boas alegrias afastam a pobreza e bons lazeres afastam a prosperidade.’

Parece razoável. Uma exemplificação do caminho do meio, um antídoto contra a ética do workaholism. Mas como conceber que a alegria possa espantar a privação material? Ou mesmo que o lazer implique a deserção da riqueza?

Na tradição Tao o conhecimento deriva da observação da natureza. E, de forma paralela, da observação da experiência de outros humanos. Não se pretende um valor de verdade nos moldes da lógica ocidental. Assim, é como se vissem ações que parecem correr em pistas totalmente diferentes mas que se mesclam ao produzir um resultado na vida, que afinal é una. Que só tem a ganhar quando se faz tanto lúdica quanto aprazível.

Trivial a ponto de ser senso comum?

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O fragmento de Lie-Zi está em ‘Tratado do Vazio Perfeito’, publicado no Brasil pela Landy Editora

Saturday, March 24, 2007

As cores que persistem


Quem vier a São Paulo vai encontrar belas exposições de arte. Em uma delas é como se desembarcasse em Santiago, Chile. As principais obras do acervo do Museo de la Solidaridad Salvador Allende estão na galeria de arte do Sesi, na Avenida Paulista. Se a história de criação e sobrevivência desse museu já carregam virtudes, ideais de liberdade e justiça, as obras se desprendem em beleza.

Não há uma unidade de estilo ou direcionamento temático, produto que foram de doações individuais de artistas de todo o mundo. Geometria, efeitos ópticos, abstrações, figurativismo, surrealismo. Estão todos lá sem brigar. Muita cor mesmo em tempos sombrios. Gravames em linhas suaves. Alguma coisa tensa que insiste em deixar testemunho em dias de concórdia duramente trabalhada.

Olhar para essas obras faz sentir um pouco daquela força original que reaparece de vez em quando e continua sem se saber como. Um braço que se estende na tormenta. Uma voz em meio ao abandono.

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foto: detalhe do folheto da mostra, com reprodução de obra de Gracia Barros

Sunday, March 18, 2007

Promessas no ar

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De dentro do ônibus no Fura-Fila a cidade parece ainda mais obscura. A via elevada trafega por sobre o vale do rio Tamanduateí, em meio a galpões industriais e ao acúmulo de construções decaídas. Não há horizontes agradáveis nem convidativos. O trajeto parece confirmar a impressão de um caminho de obrigações e necessidades. Nem a cor amarela da estrutura anima muito o passageiro. A velocidade é pouca. Só se quer chegar.

Mas em algum ponto, entre a Vila Prudente e o Ipiranga o cheiro de bolo recém assado invade o veículo e toda a redondeza. Será de alguma fábrica? Alguma padaria? O aroma é forte e condutor. Faz imaginar os doces de uma paz culinária, embrenhada em um passado suave. Fornos e mesas, pães e biscoitos. Um chá da tarde, café, visita amiga. Esse cheiro intenso deve ser mais gostoso do que o próprio sabor. É a única força que desvia o ônibus de seu roteiro de inospitalidades.

Procuram em vão pela origem do cheiro, do bolo. Eles são de todo inalcançáveis. Não estão apenas fora do ônibus. Eles passam.

Monday, March 12, 2007

Na próxima parada


Essa deriva me mata. A incerteza do que vem, de onde, como. Saber se um dia vem. E entanto é assim, com esses altos e baixos, por essas ondas irregulares que atravesso os dias.

Essa deriva parece liberdade. A tantos que parecem mais aprisionados, em servidões voluntárias ou contingentes. Para quem não saber já é um ganho. O indefinido contra a inércia do sempre mesmo.

Mas é assim, o mal-estar contínuo na civilização. Deslizes com muitos enjôos, anestesias com tantos trancos.

É se equilibrar dentro de um ônibus mal dirigido. E não deixar passar o destino.

Thursday, March 08, 2007

Chuvas são quitações de dívidas

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É muito difícil ler Beckett.

Não pela construção das frases, tão límpidas e diretas na sua concretude. Mas pela atmosfera: um misto de rarefação e densidade, que repesa a cada nova pausa. As cenas são cotidianas e quase nada acontece em seus textos. Ninguém parece saber o que vai sobrevir e, no entanto, segue com sua rotina sensabor. E é essa insipidez o que afasta. Não se quer o que não se apresenta ao gosto.

Mas, ao mesmo tempo, é esse autor que tão bem captou o abismo, a deliqüescência do que foi humano. Do que patina insosso e não grita mais porque se esgotou a energia ou a conformação já rasteja altaneira.

Nesses dias de aridez há espelhos demais. Todo grão de areia parece vitrificado. Ofuscante. Inclemente. Faz clamar por qualquer chuva.

Monday, March 05, 2007

Equivalências

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Tudo o que é fácil é falso
Mas nem se sempre se faz tudo
Daquilo que se quer uno

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Assim, feito foto e negativo, cada um para o seu lado, perdidos um do outro. Imaginam destinos diversos, se acham sem par. Mas voltam como alvos de busca conjunta quando se quer mais.

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Wednesday, February 28, 2007

De volta a El Morado



Ouço ‘Wayfarer’ [‘Andarilho’], de J. Johnson e B. Dunning, mais uma música de inspiração celta, ao rever fotos de El Morado. Não por qualquer associação extra-natural entre cenários e civilizações, mas por simples afinidade de climas. O sopro nos instrumentos traz de volta o toque dos ventos na caminhada entre as montanhas. E a melodia mimetiza o lento avançar dos passos.

Se há solitude na altura a sonoridade parece aumentar o sentido de distância. E na semelhança com um exílio o caminhante pode encontrar um repouso, qualquer visão de outro destino.

Estarei lá repetidas vezes cada nova queda. Em trilhas que reconhecerei mesmo nos terrenos mais insidiosos. Matéria entre os sonos da lembrança e do porvir.

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El Morado existe. A 93 quilômetros a sudeste de Santiago, Chile, vive dentro de um parque nacional, parte da cordilheira dos Andes.
‘Wayfarer’ está no cd ‘Celtic Twilight 2’, da Hearts of Space


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Saturday, February 24, 2007

.... sem direção ....

Por ali talvez. Se houvesse algum sinal mais claro. Uma rua definida, ponte ou praça localizada. Mas é só ruína. Parece que todos já passaram e abandonaram. Não resta quase nada e assim deveria partir. E assim deveria seguir.

Nas ruas novas árvores plantadas. Troncos e galhos secos. Como poderão frutificar? Parecem a árvore do cenário de ‘Esperando Godot’ (de Samuel Beckett) no primeiro ato. Um esqueleto incorpóreo, fantasmaria parada, desolação. Não devem ser elas.

Para qualquer direção os destroços. Onde estará fora?

Desaparecer sem saída?

Wednesday, February 21, 2007

Pouco

Como se fosse dono
do fogo e agouro
foi o autor dos nomes,
dos contos, encontros
Desandou
Foi errôneo, foi longe

Restou pouco:
um gosto de sono,
um outono duradouro

Por onde ficou
restou sombra
que não coube na roupa
Fosse insosso ou doce,
esgoto ou fonte

Deixou dois
Levou o dobro

Thursday, February 15, 2007

Cenas urbanas recicláveis e silêncios não

Não sei se confirma Tennessee Williams, mas sem a ironia: muitas vezes são estranhos que procuram e oferecem um gesto de bondade nas salas de bate-papo. Gente de pequenas cidades do interior, sufocadas pela falta de semelhantes, alternativas, chances. Quase sempre. É uma solidariedade sem rosto. Uma cumplicidade sem nenhuma garantia de segundo encontro.

Noite alta, insone. Talvez você já tenha se sentido assim, meio suspenso no tempo e espaço, teclando. Você pode ser rápido, conciso. Mas e as respostas? Uma encarnação. Duas. Luzes fortes, palavras minguantes. Quem procura companhia?

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Dentro desse trem, um cosmos inteiro. Procuro me equilibrar entre pregadores de mão cheia (de folhetos) e vendedores de toda sorte de quinquilharias. Um shopping móvel, diante de tanta pasmaceira. Muitos barulhos incidentais anseiam preencher e enganar a volta para casa. Não deve ser bem um retorno, mas algo como a imagem que oferece a janela: uma paisagem misturada com o reflexo interior do vagão.

Assim vão, entre dormentes e estações. Entre conversas rotuladas e um silêncio que se alonga quando se atravessa a porta.

Friday, February 09, 2007

Visibilidade sem parada

São Paulo, vale do Anhangabaú. Bem abaixo do Viaduto do Chá, dentro de um cubo preto especialmente construído para tanto, está instalada uma obra de Anish Kapoor: Ascension. No interior, o caminho até ela é estreito e sinuoso, criando expectativa. É como andar por um labirinto, ainda que sem tanta apreensão de se perder ou se achar. Mas quando se chega à escultura qualquer ‘oh’ é abafado. Quase não se percebe o que está adiante. São alguns estreitos rolos de fumaça cinza clara, quase brancas, que sobem em direção ao teto, sugadas por um exaustor, dentro de um cilindro mais ou menos invisivelmente demarcado.

Talvez alguém sinta alguma comoção ali, na reprodução controlada de uma cena tão corriqueira. Qualquer vapor de água de chaleira, qualquer chaminé, qualquer ralo gasoso... Outros poderão entrever algo de metafísico na quase imaterialidade quase diluição das amarras existenciais. Alguma conexão espiritual, sugerida pelo título? Na cidade ela pode servir como âncora de questionamento, parada para refletir.

A quase invisibilidade de pessoas, construções, sinais exige mais tempo para quem passa. Exige uma disposição diferente do olhar. Uma segunda chance. Quantos terão?

Sunday, February 04, 2007

O tao das árvores












[ao som de ‘Tonight my sleep will be restless’, de Alasdair Fraser e Paul Machlis, música de inspiração celta, ainda que a Irlanda não seja aqui]

Há muito tempo plantei um pinheiro. Desde os primeiros ramos, ainda no vaso de barro, acompanhei lentamente seu crescimento. Até que, transplantado para o solo do quintal de casa, ele ganhou o espaço para se expandir em sua justa medida. Viveu placidamente por diversos anos enquanto não acendeu temores humanos que, por fim, o vitimaram.

Ele continua a viver em cada pinheiro que encontro nas cidades que encontro. Em cada um deles posso reconhecer algum fragmento daquela mesma árvore. Inteira, como ela deve durar. Com diferenças acentuadas, como ela se transforma em toda nova vizinhança. Resta em uma quietude azul.

De certa forma, é sempre o mesmo pinheiro. Apenas mais forte com o tempo que incorporou nas sucessivas rematerializações. Sempiterno. Agora e aqui.

Tuesday, January 30, 2007

Ímpar


‘O grande objetivo da viagem não é ver terras estranhas; é ver a nossa própria terra como terra estranha’ (G.K. Chesterton)

‘A viagem pode ser uma das mais compensadoras formas de introspecção’ (Lawrence Durrell)

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Se houvesse uma segunda vez cada um dos minutos não pareceria diferenciado, surpresas de descobertas. O traçado das ruas estaria absorvido como o vocabulário de todos os dias. Não haveria tanto significado solto para ser recombinado. E nesse passo descontinuado suspenderia qualquer novidade para apenas reconhecer qualquer possível par.

Haveria segunda história, seguidos silêncios. De uma outra natureza.

Andaria talvez por esses mesmos bairros de incontido encanto com um olhar de menor arrasto. A toda paisagem responderia com repouso e serenidade.

Mas sobreviveria essa incerteza residente? Sem abismos cenográficos ou respiros contados? De que outras perdas me alimentaria ou ficaria liberto?

Em uma segunda vez, quem sabe, flanaria sem margem. Para o desconhecido?

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foto: anoitecer sobre Santiago, a partir da Terraza Bella Vista, no Cerro San Cristóbal – por Ricardo Imaeda

Wednesday, January 24, 2007

As laranjeiras do La Moneda


Santiago é uma cidade cheia de árvores por todas as ruas. Nas calçadas frutas caídas, não de alguém que as perdeu ou lançou desleixadamente. São cerejas, ameixas, outros nomes que não adivinho. Amadurecidas em excesso, espatifam-se na cerâmica como flores ou folhas. Talvez atraiam mais pássaros. E tragam outras cores. Um pomar incidental na cidade para quem mais souber apreciar.

No centro, o prédio branco se anuncia com algum assombro. Tanta história parece cair aqui, com uma agudeza de feridas. O enorme pátio em frente se projeta com uma aridez destoante. E a escultura lateral lembra um dos protagonistas do passado. Ao atravessar a entrada, é como se me visse nesse outro tempo, em meio a todo o fragor. Não importa quanta reforma, o sentido do drama revive com turbulência, incontida nas paredes, janelas e portas do palácio.

A história parece precipitar no inesperado de um choro. Inacabado, inacolhido. Chorar, por tantos que viram ruir sonhos acordados, utopias desvairadas de inocência e superação. Chorar pelas dores compartilhadas na distância e na impossibilidade. Chorar sem sentido na manhã ensolarada, agora entre tantos visitantes desanuviados. Agora que descubro, no segundo átrio, tantas laranjeiras carregadas, com seus frutos providenciais.

As laranjeiras do La Moneda são um encontro feliz. Na simplicidade de sua entrega acenam para dias que se reciclam, com frutos para colheita para braços que souberem se estender.

Saturday, January 20, 2007

A escala


Voltar a Baños Morales depois da longa caminhada serve para redimensionar as coisas. Esse povoado no vale do rio Morales parece pequeno demais diante da altura das montanhas em torno. Mas é nessa medida que ele se implanta de forma silenciosa e real. Na justeza de escala do que é humano, na fragilidade e resistência do que se vê parte, inteiramente parte.

Descer de volta a esse mundo é ao mesmo tempo descer ao plano do conhecido e incorporar o aprendizado do que se descobriu de tão absoluto.

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foto: povoado de Baños Morales, no Cajón del Maipo, em meio aos pinheiros e aos Andes, Chile – por Ricardo Imaeda

Sunday, January 14, 2007

E continuar


Andar entre montanhas é andar sem passado. Uma possibilidade de tirar o peso sob os pés, desfincar raízes, caminhar na fina superfície que separa e integra a terra e o corpo. É sentir o tempo decantar em cada uma das pedras soltas. Contemplar desavisado arbustos floridos, regatos de repente. Junto à laguna serenar. Para lá parece convergir o mundo, reduzido aos elementos essenciais.

Diante da grandiosidade da paisagem a história se eclipsa. Não se movimenta mais no ritmo da urgência. Seu tempo é o presente. Apenas (e tudo) isso.

Assim o dia parece parar. Como qualquer traço de memória ou biografia. A rica vida ao redor ocupa todo o momento prolongado. Ela é a outra parte encontrada. Desconhecida, mas tão íntima. Faz cessar os passos para uma espécie de reconhecimento de campo. Deixa-se saudar em celebração silenciosa a saudade que a fará reviver.

Entre as montanhas andar.

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foto: laguna del Morado, monumento natural El Morado, Chile – por Ricardo Imaeda

Wednesday, January 10, 2007

El Morado para sempre



‘O Captain! My Captain! Our fearful trip is done,
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won’
- Walt Whitman
[‘Capitão! Meu capitão! Nossa viagem temerária chega ao fim
O navio sobreviveu a toda tempestade, o prêmio que buscávamos está ganho’]

A estrada, as pontes de madeira e a trilha íngreme e pedregosa ficaram para trás. Tudo agora parece submergir face à sua presença arrebatadora. A montanha arroxeada, constantemente atravessada pelas nuvens, domina o campo de visão em todo o percurso ao longo do imenso platô. Ela dirige os passos e os olhares; convida e acolhe os visitantes. É irresistível caminhar em sua direção.

Um silêncio de calmaria é pontuado pela voz de pássaros e do rio descendo ao lado. As rajadas de vento nos impelem para junto aos glaciares.

Quase sem alarde a mente se esvazia das aflições pendentes e é essa paisagem que ela passa a respirar. E devolver ao entorno um sentimento de pacificação. Como se finalmente se encontrassem em um abraço.

Um abraço mais largo e apertado que toda a jornada que os aproximou. E que sobreviverá em seu passo conjunto.

[para Adriano e Nilton, amigos e companheiros de jornada]

foto: cerro El Morado, monumento natural El Morado, Chile – por Ricardo Imaeda

Sunday, January 07, 2007

de volta para casa


Faltam trinta minutos para o pouso e a expectativa aumenta. Afinal, depois de planícies intermináveis e terrenos geometricamente cortados (agriculturados), começa o trecho rochoso, marrom avermelhado. Mas não é nada demais. Tanta terra assim na sua terra.

Agora restam vinte e dois, vinte e então ela aponta mais à frente. É uma epifania.

O avião se inclina e é como se de fato mergulhasse para dentro dos contrafortes imensos, de neves irregulares. Um magneto extraordinário, que captura e comove os olhares.

Não é uma cadeia montanhosa qualquer. Não é só uma questão de escala. A cordilheira parece conter algo mais. Um assombro que instabiliza os mais insensíveis ou fatigados de tantos cenários naturais.

Olho do alto – de mais alto – mas é como se estivesse no sopé, entre as pedras que ali se fixaram. Por fascínio ou gravidade.

Olhar para os Andes é voltar para casa.