Sunday, January 27, 2008

Os fios

A cidade de São Paulo está cada vez mais presente nas telas de cinema. Roteiristas e diretores devem ter percebido, como fotógrafos muito antes, a textura dramática de suas desencontradas composições. Quem andar atento por qualquer rua pode assim comprovar. Destinos em seguidas mudanças desatando-se nas linhas de fuga das ruas. Estranhos feito famílias. E sensações de passado e eternidade na aparente trivialidade de um gesto de passagem.

‘O signo da cidade’, de Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli, traz um pouco desses fragmentos de vidas temporárias. Algumas delas nas derradeiras ações sobre a Terra. Quanta gente morre, quanta gente se mata. Findar é uma vontade de força, afinal. Um ato brusco de transformação, busca de alívio para a dor crônica de continuar.

Nessas histórias cortadas a cidade parece, de alguma forma, reverenciar a pessoa desconhecida. Ainda que a sobrepasse ou a despreze, é como se tirando seu valor ela reconhecesse o imponderável. Na falta, a diferença. Na violência do fim, a pausa para refletir sobre o fim.

Grandes cidades parecem alimentar pulsões fortes e contraditórias que, no limite, chegam a se anular. Em meio a elas o caminhante estende a mão.

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foto: detalhe do pórtico de entrada e dos ciprestes do cemitério São Paulo, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Thursday, January 24, 2008

De mais a menos

A chuva lava a mochila e o que abriga. Na desordem do que molha a lembrança de toda água brotando do piso, alcançando os pés, a levantar o que sobra. A casa baixa, presa de enchentes. O olhar baixo, na altura crescente dos estragos.

Tudo se molha mesmo no agasalho. Nessa chuva lateral, oblíqua, a enxurrada é quase certa. Lava a roupa, lava os braços, deixa papéis enrugados. Deixa de novo seu andar preocupado. Não é possível se proteger em qualquer ponto desse caminho.

Lava o passo, abraça a água. E faz da chuva uma vacina.

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foto: mirante do Alto da Lapa, em São Paulo, por Ricardo Imaeda


Saturday, January 19, 2008

Dormente

Quantas vezes não se precipitou sobre parapeitos sem fundo, dia depois dia, no calor de corridas sem fôlego, minutos agora. De arrasto, sobre pernas incertas, não se atira, ainda, no imprevisto da saída. Ali estão outros mesmos, idas ou voltas.

Com menos, cada vez menos, quantos giros ainda?

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[ao som da ária ‘Ebben?...Ne andrò lontano’, da ópera ‘La Wally’, de A. Catalani, na voz de Renata Tebaldi]
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foto: linha leste-oeste do metrô de São Paulo, a partir da estação Bresser, por Ricardo Imaeda
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Saturday, January 12, 2008

Se passar

‘Ánimo que aunque hayamos envejecido,
Siempre el dolor parece recién nacido’
- Maria Elena Walsh, em ‘Canción de caminantes’

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Quando a situação está fora de controle não há passos a entregar, nem flores em oferta, qualquer símbolo mais forte. Sirenes em cada canto atropelam os ponteiros. Mal acompanham as faces distorcidas pelas compressas da urgência. Não há folga, só estiramento.
A voz se esfumaça quando tenta cantar.
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foto: detalhe da igreja Nossa Senhora do Rosário, no bairro de Pompéia, São Paulo, por Ricardo Imaeda
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[ao som de ‘Where you there when they crucify my Lord’, spiritual de domínio público, na voz extraordinária de Selma Reis]

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Sunday, January 06, 2008

A um passo de agora mesmo

Transitar de um modo de sobrevivência para um modo de celebração pode ser mais fácil ou complicado dependendo das condições gerais de temperatura e pressão. Algumas vezes a mudança é fortemente instigada pelo calendário: o clamor ritualístico tenta invocar em cada pedestre o corredor que teria varrido essa mesma avenida horas antes. Mas não funcionaria sem outros passos.

Deixar a calçada e parar em meio à pista nesta noite vem junto com um olhar de diferença sobre si mesmo e o tempo. É como entrar em uma catedral em meio ao burburinho da cidade, como diz Joseph Campbell no primeiro programa da série ‘O Poder do Mito’ (em dvd da Cultura Marcas ou no livro editado pela Palas Athena): somos levados a um outro estado de consciência, um reencontro com uma dimensão do sagrado escanteada pela agitação predatória do cotidiano. As luzes filtradas pelos vitrais, a atmosfera de tranqüilidade e reverência, a concentração nos temas essenciais, tudo nos convida a mudar o modo em que operamos há poucos instantes.

O gari estende os braços, canta e caminha dançando ao som de ‘Pense em mim’. Nessa hora ele deixa seu material de trabalho e imerge enquanto pessoa nesse momento, que o lembra e desperta. Os policiais se abraçam. Famílias inteiras transferem sua sala para um trecho da via pública. Um grupo de jovens posa para uma foto, lenta para ser registrada. Tipos suspeitos (de qualquer margem) também ocupam seus espaços moventes.

Os vitrais se compõem e se volatizam no céu da avenida.

Andar por essa pista agora é mudar de modo. Simples, espontaneamente.

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foto: madrugada na passagem de ano na avenida Paulista, São Paulo, por Patrícia Blancato (a quem agradeço a gentileza pela cessão da imagem)

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Tuesday, January 01, 2008

Entre o céu e a terra

[ao som do tema de ‘Blade runner’, de Vangelis]

Ganho um álbum para guardar fotografias, desses simples, de papel reciclado, com espaço para uma foto por página. A época é propícia para lembrar, recuperar, ressignificar lugares e pessoas. Nas horas que se passam com a busca e a seleção a história de uma jornada é composta inúmeras vezes. Não apenas com memória, mas com entornos de humor flutuante, ao sabor dos efeitos de longo prazo. São como as imagens de algum oráculo, abertas a construções diretas ou muito filtradas.

Quando olho para o álbum assim incompleto é como se relesse um texto, antigo, recente, a que falta um título, uma frase em meio aos parágrafos. Talvez os espaços em branco suscitem dores esquecidas. Indecisões no percurso. E a seqüência pareça um pouco brusca, sobressaltada, com muitos fios soltos, longos trechos sem registro. Mas eles me deixam também com um sentimento de céu e terra: um sentido de reconciliação com o que não compreendo, a que posso contemplar e que continua a me sustentar na procura.

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foto: moai da ilha de Páscoa, no jardim do Museo Fonck em Viña del Mar, Chile, por Ricardo Imaeda

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