Wednesday, June 27, 2007

A casa à beira de um mundo desconhecido


Ele traz na bagagem uma câmara fotográfica e algumas idéias vagas sobre o passado. Ao desembarcar do trem puxado pela maria-fumaça sente uma familiaridade com aquela enorme construção. Era como se já tivesse morado ali, tempos de precariedade e mudança. Um continente novo, de terras amplas e palavras difíceis de pronunciar. Esse era o lugar por onde passaram tantos imigrantes de origens longínquas, biografias inteiramente alteradas na incerteza dos dias e anos.

Talvez se veja ainda como um imigrante nessa visita. Cada aposento lhe causa estranheza e medo. Nas peças de mobília e objetos de uso pessoal parece estar ainda irresolvida a disputa entre forças de partida e deriva. Eles traem um apego querendo não ficar. Como se tivessem impresso para hoje o toque tenso das mãos que a eles um dia se agarraram. Os passos relentam e pesam. Nesta casa muitas vidas devem ter se dividido. Para não mais se recompor.

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foto: Memorial [antes Hospedaria] dos Imigrantes, Mooca, São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Tuesday, June 19, 2007

Até onde?

[ao som de ‘Movimento dos barcos’, de J. Macalé e Capinam, na voz de Toni Platão]

Em sua busca chegou ao outro lado do continente. Até às águas geladas do Pacífico. Superou os obstáculos da cordilheira e do idioma para provar para si mesmo que continuava vivo na sua promessa. Por todo o caminho encontrou faces generosas, ouvidos atentos à sua pronúncia e sentidos. E paisagens de National Geographic. Mas o objeto de sua procura deveria estar mais adiante. Sempre mais adiante. Subiu um dos cerros mais charmosos da cidade para melhor contemplar os caminhos, as possibilidades. Depois do nevoeiro, o infinito. Não estaria na terra o que sempre quis ter. Sua partida era apenas um início.

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foto: baía e porto de Valparaíso, a partir do Cerro Concepción, por Ricardo Imaeda

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Thursday, June 14, 2007

Sabores artificiais

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O rapaz entra no ônibus e começa a falar seu texto decorado. Cada nova frase sai aos borbotões, tão automática quanto linear. Não há diferença nem vírgula, ênfase ou intenção. Tudo soa a impostura. Mas é assim, na armadura desse papel, que ele cumpre seu rito.

Se há incômodo, também redenção pela legitimidade do trabalho honesto. Todos sofrem por uma informalidade forçada, intrometida, sem licença ou qualquer esboço de convite. Informalidade do serviço na formalidade do discurso na informalidade da chegada. Parece ainda pior no fardo de quem vende, subindo e descendo sucessivos degraus, atropelos, corridas sem freio, quase batidas.

E então vêm os produtos: balas coloridas, gostosas, a preços de ocasião. As cores são ainda mais vivas do que naturais. E sabores: limão, abacaxi, morango. Nem dá para lembrar de todos. Mas não há muitas ilusões para quem compra, mesmo porque o que se quer é a sensação do doce. Até parece limão. Quem se distrair, quando se distrair, terá uma satisfação de limão. Entre um momento e outro, do saber e do acreditar, haverá paisagens na janela, cansaço, muitas falas cortadas, abafamento, outros vendedores.

Os sabores artificiais são pequenos disfarces, dentro dos quais tantos se encontram e se contentam. Lembram dos verdadeiros e estão mais ao alcance. Quase sempre são mais baratos. Enganam sem ferir. E fazem crer no que se sabe não valer.

[Sabores artificiais sobrevivem e se realimentam em crenças políticas e religiosas, relações organizacionais e familiares, academias e tantos outros lugares]


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Friday, June 08, 2007

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[ao som de ‘Heaven knows I’m miserable now’ (The Smiths)]

Não é Londres mas sempre oferece a possibilidade do encontro com diferentes. De diversas cores, palavras desconhecidas. Como uma plataforma de embarque, qualquer coisa assim. Ou banco de parque, museu, café. Em um dia que a vida da cidade permite andar mais lento o olhar também pode vagar.

Dura pouco, é verdade. O tempo de uma caminhada. Talvez nem isso. Algumas vezes basta piscar os olhos e não está mais lá.

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Friday, June 01, 2007

O que esfria

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A chuva veio com vontade. Com quase o mesmo peso da mala que ele suspende pelas ruas em mudança. Mas os golpes da água não o amolecem mais. Pode chover o que falta, inundar o que sobra e não terá retorno. Já as roupas esfriam enquanto atravessa as poças entre os sobreviventes da noite. É por instinto que se move. Faz continuar a viagem mal começada.

Veio com vontade à estação em que embarca no ônibus que partirá com chuva ou lua cheia. O barulho das conversas parece um coro em harmonia com os restos que atiça e remói enquanto procura se secar. Tanta dedicação, todo desperdício. Nove anos de partilha reduzidos a poucas frases fixas, que se repetem na cabeça ao ritmo dos esguichos de água contra a janela na espera da saída.

A vontade vai com ele, ônibus, chuva. É a memória que a move. Mal parte, lança planos de voltar. Só as roupas esfriam em seu corpo.

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[ao som de ‘Rainy night in Georgia’, de White , na voz de Randy Crawford]