Monday, December 25, 2006

Um dia a mais

‘Live as if you were to die tomorrow
Learn as if you were to live forever’
- Mahatma Gandhi
[‘Viva como se fosse morrer amanhã
Aprenda como se fosse viver para sempre’]

Enquanto ventos fortes batem de chegada a estes lugares, o pensamento se retira para algum ponto obscuro entre a terra e a alta atmosfera. Que estranho estar aqui de novo, meio a tanta gente diferente, com valores diversos e destinos também. Diante de conflitos sem fim, resta se desgastar ou construir conhecimento. Talvez esse cansaço seja uma mescla dos dois.

Ângulos agudos, espinhos.

‘And every time I’ve held a rose
It seems I only felt the thorns’
- Billy Joel
[‘E cada vez que segurei uma rosa
Parece que sentia apenas os espinhos’]

Quando eles ferem incisivamente são o dia que não nascerá de novo. Mas quando funcionam como alerta ajudam a despertar. Um convite ao aprendizado, para quem carrega uma curiosidade imorredoura.

Thursday, December 21, 2006

atormentada cidade que o acolhe

Olhou para o chão com cuidado nesses dias em que chove bastante. Ainda que não possa evitar água por todos os lados, as poças tendem a ser mais desastrosas. Nelas não havia Narciso nem visões de inferno. Apenas a cidade retalhada e refratada. E nuvens mais sombrias.

A cidade pode ser bonita sob uma tempestade. Nessa fronteira entre o fim do centro e o início da subida da Brigadeiro Luís Antonio. Ali onde os corredores preparam seu último fôlego para a subida final rumo à Paulista na São Silvestre de todos os anos. As nuvens líquidas, espiraladas, tangem o asfalto, escorrendo em lavas contra os cidadãos mal protegidos. Bela a cidade sob essa névoa inconstante. Em momento de parada involuntária. Tão perto de datas grandiosas e corridas perdidas.

Olhou para o céu com admiração. Foram dias de turbulência mal pressentida. E agora, parado (pela chuva), contempla o que resta da cidade que deixará em breve. Ela quase perde cor e densidade, mas quando assim o percebe ouve sirenes e estridos inclementes. Ainda há vida, qualquer.

A cidade o emociona de uma forma impiedosa. Por um desses caminhos sem volta, sem indicações ou atalhos seguros. Guarda todo o seu pesar em cantos pouco visitados. Envelhecidos sem biografia, reclamam sua voz nessas horas de imobilidade.

Quando a chuva acabar, tudo isso perderá sentido?

Sunday, December 17, 2006

Todo preparo e cinzas

Não é preciso um vaticínio de morte para mudar tudo. Basta um sentimento de finitude próxima. De que algo não vai bem com o corpo ou com o espírito. E as formas todas ganham outros sentidos. Cada gesto, peso alterado. A cidade, antes abrigo, começa a discutir com as lembranças.

É assim que passo esses dias. Na sala de espera de qualquer surpresa temida, sem pensar (porque seria mais dolorido). Sem provisões de água e alimento, agora que tais bens não sustentariam uma travessia. E sem repouso, porque pareceria um termo decisivo.

Não recitaria um mantra nem uma prece, ainda que Mahatma Gandhi assim o recomendasse. O silêncio é um único conforto. Reintegra o que se dilacerou ao longo do caminho.

[Talvez uma vela possa ajudar]

Monday, December 11, 2006

Instantâneos em uma noite insolúvel

Rodo por São Paulo à noite, nessa época de luzes natalinas. A imensa árvore artificial, com suas lâmpadas piscantes, funciona como farol (maior, mais atraente) no parque do Ibirapuera, junto a uma das vias expressas que cortam a cidade. Com uma inesperada queda da temperatura, a cidade volta a ostentar uma das suas marcas registradas do passado (a garoa). Muitos turistas procuram se localizar, lutando com mapas e a dificuldade do idioma. E atarefados conjuntos familiares passeiam, compram, tiram fotos.

O ritmo é o mesmo dos dias de semana (produtivo, contingente). Só muda, talvez, o motivo condutor. Afinal, esse é o período de recuperar ou tatear algum encanto – de uma lembrança ou um conto de fadas ou uma propaganda. Tempo de enfeitar as superfícies, revestir as intenções.

É um cenário de musical, de vésperas recheadas de ensaios, produtos acabados em si mesmos. Em sorrisos que se produzem de uma forma contínua e natural, como essa neve. Em procissões de carros, mais lentos (mas com as mesmas reclamações de sempre), ao som de ‘Adeste fideles’.

Uma garoa inesperada.
Bela, porque improdutiva, incontingente.
E inteiramente sensível ao toque.

Tuesday, December 05, 2006

algia

Compreendo toda dor. Daqueles plantados nessas camas de ambulatório aos privados de liberdade nas celas dos zoológicos. Essa dor física, nevrálgica, muscular, crônica, recorrente. Sinal de presença de um desejo de finitude ou de cura. Que altera prioridades do dia, desequilibra a percepção das coisas, empalidece.

Compreendo essa imensa dor. Atualizada em um passo irregular, na medida dos enganos e na aflição dos desesperançados. Larga como uma perda. Insolúvel, sólida. Inclemente, etérea. Essa imensa dor que sentes, me transmites, derrota.

Compreendo porque ela me acolhe quando não a procuro. Sem trilhas definidas, mas decidida, caminhante. Envolvente como a falta de ar em que a tento sufocar. Agora que ela se quer íntima. Compreendo sem qualquer explicação, em uma espécie de atalho para a queda. Um caminho.

Monday, November 27, 2006

F e G

Falava fácil, com afeto,
voz afável, aflanelada
Uma face fina
falava flores sem fim

Mas foi se esfalfando
engrenada pelas garras
grifos, gruas
que por aí grassavam

Engradada,
só de grunhidos
grasnou seu fim

Thursday, November 23, 2006

Mais leveza


Pelo menos os fins de dia arrebatam em cores o que o resto pode ter subtraído de vozes. Duram pouco, mas são minutos para ganhar vôo sobre qualquer assunto terreno. Para se encontrar em meio ao imenso vazio lá em frente, tão presente já do lado. Não pensar em nada, esvaziar.

Em cada final podes extrair beleza. Em cada sobrevôo, refúgio. Agora que o dia parece parar.

Deixa assim terminar a jornada como talvez nunca comece. De uma forma sutil como a mudança das cores. Ilusoriamente bela, como só quem finda junto pode perceber.

Saturday, November 18, 2006

Vidros agudos

Mais uma peça de vidro se quebra. Desta vez é um porta-retrato. Das duas placas finas sobre pequenos pedaços de madeira, os cantos ficam moídos e um risco diagonal percorre toda a superfície. Minha foto noturna, na praça do Sol em Madri, parece rasgada. Mas não. Ela sai intacta. É apenas o vidro que se vai.

Gosto de vidro. Da sua transparência quase cristalina. Dessa fragilidade, que toda hora faz lembrar de uma finitude ali, depois da esquina. E o caráter meio dúbio, que às vezes permite transpor e em outras devolve a cena – um pouco de cada, dependendo do ângulo, da luz, de quem.

Busco vidros. Em peças para uso ou contemplação. Copos, pesos para papel, drusas de cristal e até mesmo um Buda holográfico. Um dia, por algum descuido ou acidente, como agora há pouco, o susto revirará o encanto da matéria. Só o trabalho de recolher todos os cacos trará de volta a aridez da areia.

Guardo a foto como os cacos. Qual deles guardará mais feridas?

Sunday, November 12, 2006

Sem férias

Depois de encerrado o filme, saio para a Consolação e viro em direção à Paulista. É começo de noite, as lâmpadas começam a se acender, mas ainda há luminosidade do dia. Caminho entre muitos passantes em pressa sob um silêncio interior. Algo está diferente. Como se a atmosfera do filme houvesse contaminado minha visão da rua. Não deveriam me entender, mas será que perceberiam? Todos agora faziam parte da história, personagens que ganhavam novo significado e pareciam reverberar as cenas daquele ano de 1970.

Andava devagar, mais do que de costume. Talvez porque quisesse respirar mais fundo, deixar decantar toda a delicada tessitura das vidas fictícias. Não que fossem parecidas com a minha. Escassa tangência. O silêncio, que agora se espraiava a todo o entorno, me aproximava mais de toda essa gente. Nem mesmo a velocidade e a turbulência dos carros e passos conseguem alterar o ritmo de câmara lenta.

Faz frio, o vento mais frio. Nos muitos rostos pareço encontrar algum sentido de fraternidade que me faz andar junto, por menos real que ela seja. Talvez nada além de uma ilusão produzida pela falta de palavras. Uma frágil ligação pelo espaço vazio assim aberto. Na ausência de sons as fraturas deixam de parecer abismos.

O silêncio nos aproxima.

::

[O belo filme de Cao Hamburguer, ‘O ano em que meus pais saíram de férias’, está em cartaz no cine Belas Artes, em São Paulo.

Além de tudo o que já se disse a seu respeito, vale escrever que ele acompanha o roteiro de transformações de humanos sem a metáfora comum da viagem. Bem ao contrário de um road movie, ‘O ano...’ tem como lastro das mudanças o espaço fixo de um bairro, o Bom Retiro. Estar na cidade, viver a cidade permite criar variadas atmosferas e situações de decantação das experiências. Não só pelos encontros mas também muito mais pelo isolamento e silêncio que só nascem da vida difícil na urbanidade.

Que a história do filme possa nos atingir é um respiro feito dor sem linimento.]

Wednesday, November 08, 2006

O segundo passo













Ele percorre longos trechos a pé.

A cada dia pensa ser diferentes porque vira esquinas antes não trafegadas, atravessa ruas em lugares pouco prováveis, faz zigue-zagues onde menos se espera. Mas não deveria se iludir. Ao invés de segmentos de reta, seus percursos descrevem espirais. Ele sempre retorna ao mesmo ponto, mais velho, mais cansado.

Seus percursos são roteiros de um relógio externo. Precisa caminhar para não perder o ritmo. Qualquer distração pode animar o andarilho, aliviar o fardo desse maquinismo. Esquecer. E esquecer poderia ser bom, se não houvesse tanto entulho soterrando-o.

Andar é abrir frestas para respiro.

Os repetidos esforços começam a fatigar. Mesmo aquilo que lhe assegura vida agora parece pedir ajuda. Não basta cessar o movimento ou tomar água. Nem talvez seguir outro rumo. É quase certo que ele não saiba o que fazer. Ou que não deva existir mais nada.

Mas os ponteiros continuam sua jornada.

Thursday, November 02, 2006

Talvez quase













[para ler ao som de ‘He´s got the whole world in his hand’ (trad.), na voz de Nina Simone]


Já não estranho nem me importo
Com o tanto que ficou inacabado
Conversas, encontros, jogos
Interrompidos no primeiro estalo

Parece mais previsível e rápido
O que antes surpreendia, durava
Segue agora como um hábito
Que apenas embaraça

Fosse de chumbo, fosse de asas
Se caísse fundo ou voasse
Poderia não valer mais nada
Mas talvez pouco, talvez quase

Saturday, October 28, 2006

http://mensagem











tudo verdade:
pensar enlouquece
assim na tela como na sorte

tudo enlouquece
embora haja frestas em todas as janelas

o amaldiçoado viajante
entorta a tela como a sorte
não enlouquece
mas deixa a verdade para longe

de todas as janelas nenhum traço
nem torto nem vivo
em um dia perfeito
assim é se lhe parece

tudo viagem

[a partir de títulos de blogs e de nicknames de autores de blogs, alguns deles traduzidos para o português]
[homenagem à blogosfera e a seus criadores; texto de encerramento de oficina de criação]

Monday, October 23, 2006

A diferença











Se não é por tanta indiferença
Que seja pela fase da lua
Todo o abandono, quanta partida
Inúteis paisagens qualquer dia

Se não é por pouca indiferença
Que o faça por mera fantasia
Um gesto de ajuda, ombro de arrimo
Para seu desfile de auto-estima

Se não é qualquer indiferença
Que seja alguma, fortuita vez
Nem que venha assim muito forçado
Para só o corpo reconhecer

Thursday, October 19, 2006

Sobre o chão que passa sobrevive

Sala de espera de hospital é um Purgatório, seja isso o que for. Você só consegue pensar nas coisas mais graves. Sentido da vida, flash backs dos momentos mais marcantes, milagres que não acontecem. Que tudo pode lhe custar mais, taxímetro rodando. Cada novo procedimento, cada velha incerteza. Quando há um jardim, as plantas parecem sobreviver. O chão é lacerado e limpo, mas respira como sob plásticos. Provisório como as súplicas que se consegue imaginar.

Mesmo os lírios amarelos se vergam frágeis no canteiro mal tratado. Pela janela o dia fracionado parece suspenso, sem cotidiano, só espera. O teto não tem estampas. Nem sossegos. Qualquer carrinho que passa é um susto. Qualquer susto serve.

O chão é lacerado e plástico.
Uma agenda com telefones. Mas quem?

Qualquer susto é mais humano.

Tuesday, October 17, 2006

sospiri












Aí eles passam. Melhor dizendo, simplesmente ignoram. Como se não fosse com eles. Seu olhar é de quem tem um horizonte dentro de si mesmos. Não se perturbam porque não se importam. Deixam os outros sem respostas. Tiram o valor de qualquer crença, qualquer valor.

Mas então você aprende. Com essas lições sem palavras. Duramente aprende a não acreditar. Anda por essas paisagens que por sorte não foram absorvidas pelos indiferentes. Olha para o chão enquanto ouve o barítono cantar a ária de Haendel:

‘Lascia ch’io pianga
Mia cruda sorte
E che sospiri la libertá!’
[Deixe-me chorar pelo meu destino cruel
E suspirar pela liberdade!]

Existe ária mais bela?
E você desaba.

Friday, October 13, 2006

embarca, embora











Sempre que estou em uma stação de trem é o acordeon que parece vir para acompanhar a espera. Não sei se é uma influência de Gato Barbieri e suas trilhas de cinema. Mas o som rascante e doce, as notas prolongadas com o fole se abrindo, a atmosfera de um passado alheio, tudo parece compor adequadamente essa hora. Uma suspensão quase forçada de tempo antes do embarque. Porque o sentido das estações de trem está no embarque.

Talvez não o ritmo quebrado e vigoroso de um tango tradicional. Ou o alegre vibrar do baião. Talvez o acordeon ecoe mais a sonoridade de uma canção parisiense ou de uma seresta do interior paulista. Traz uma tensão leve, suportável, que captura o ouvinte para sua história. Convida para um terreno estranho, chão que se move e deixa intranqüilo, mas ao mesmo tempo conforta com seus acordes compassivos.

Nas estações a solidão é mais amena. Tem o sentido de uma passagem. Escuridão com fundo. De uma cidade que mal se reconhece, do movimento dos que migram. Não buzinas nem sirenes. Conversas destoantes. E aquele som.

[O belo show de Mônica Salmaso (voz) e Toninho Ferragutti (acordeon) está em cartaz no Teatro Fecap, Liberdade, São Paulo, até o dia 22]

Wednesday, October 11, 2006

Urbana, Legião









16 de junho, 1994
Ginásio do Ibirapuera, São Paulo




Seria o primeiro show da Legião Urbana que eu veria. E era um momento tão especial que eu queria reunir todos os meus amigos. Todos? Talvez apenas os mais próximos (nem eram tantos). Tinha acabado de sair ‘O descobrimento do Brasil’ e era época de divulgação do disco. Sabia poucas das novas canções. Havia, claro, ‘Perfeição’ e seu retrato irônico da moral nacional. Mas esperava, também, todos aqueles sucessos antigos (e nem tanto) que poderia gritar ou sussurrar, com a cumplicidade de tantos desconhecidos irmãos.

Seria talvez clichê demais falar em magia, encanto. Ocorre que foi isso. Tudo muito desconfortável: as cadeiras para não ficar sentado, o palco longe, o som atravessado, engasgado, e eu, com aquela pasta de trabalho, aquelas roupas quase sociais. Mas tinha um sentido ali. Uma comunhão. Todos nós estávamos ali para ouvir e cantar e celebrar a nossa não estupidez. Fazer ali a nossa catarse coletiva. Relaxar a guarda de tantos embates diários. Chorar, como só é possível no meio de ‘Andrea Doria’.

Quem vai dizer o que sentiu?

Lembrava de meu conhecimento tardio da banda e seu universo de sentimentos. E dos cinco discos.

Em dois anos estaria eu em casa nova, finalmente só, como jamais pensei que sempre estivesse. Ouvir os discos, encolhendo-me em antecipação de frio, geadas. Ali o palco, ainda vazio. E penso: afinal.

Nenhum dos amigos presentes. Talvez fosse melhor assim. Legião é para ser ouvido na solidão ou junto a estranhos. (‘Sempre dependi da gentileza de estranhos’, não é?)

E mal pressentia ser esse o derradeiro show. A morte, dois anos depois. Como o primeiro apartamento. A primeira vez, minha última chance.

Quem vai dizer o que sentiu?

Um mergulho no nosso próprio poço, menos líquido que de inseguranças. De um plasma sem luz, escavado nas falhas da alma. Que nunca é fundo o bastante.

Olho para todos os lados. Movimentos de braços, lenços, cabeças. A voz de Renato esbraveja, atordoa por entre as ferragens. E vai se impondo, pairando sobre o estádio qual profeta, incenso ou dor.

A imensa dor que sentes.

O volume alto ecoa nos ouvidos. Persiste mesmo fora, mesmo depois. Mesmo agora. Procuro andar um pouco, quase meia noite. Amanhã tem trabalho de novo. E tem show também, mas não vou poder ver. É melhor tomar um táxi, demora o ônibus. Mereço algum conforto agora. Parece incrível, mas consegui ouvir a todos e a mim mesmo, com toda a massa sonora. Mereço folga de algum esquecimento.

Dizia um personagem de filme que repetia para não esquecer. Aqui estou, andando sem destino, pelas ruas de minha cidade, apartamentos acesos, vivendo em separado, pensando ouvir alguém dizer meu nome.
Pareço repetir sempre a mesma história.
Parece verdade.

Quando o que for finalmente se dissolver.

[in memoriam dos dez anos do passamento de Renato Russo e da Legião Urbana]

Sunday, October 08, 2006

Não há outro

Não é questão de ser bonzinho ou malvado. O problema é esse partidarismo da razão. Uma forma de pensar que começa dividindo a realidade em lados, territórios, universos. E encontra um meio favorável para prosperar nas mentes cindidas e muito voltadas apenas para si mesmas. É um caldo para pontos de vista unilaterais que se acham abertas, até mesmo democráticas. Que querem entender o mundo e o transformar, nos moldes em que o entendem. E querem convencer os que estão do outro lado (como se outro fosse). Não percebem sua opacidade, sua irrefreável ilusão.

Não há respiros nesse partidarismo da razão. Ainda que tudo pareça claro e iluminado, as saídas estão impedidas. Mas nem se dá conta disso. Porque é assim que se costuma pensar. É assim que se educa e se amolda à vida em sociedade. Quando há fissuras nesse modelo há chances para construir pontes que diminuam distâncias.

Mas como são as consciências que irão atravessar as pontes? Terão se modificado a ponto de chegarem diferentes ao outro lado e perceberem que não é exatamente outro?

Tuesday, October 03, 2006

Do outro lado do rio


Mesmo que seja por apenas alguns minutos, voltar à cidade, à casa da infância é remar por um canal turvo, sem lanternas ou coletes salva-vidas. Assim é todas as vezes que volto para votar. A cidade está lá, mais ou menos perto, ao alcance de um ônibus. E também mais longe do que os anos que se passaram. Nem toda a pintura ou reforma podem disfarçar sua fisionomia, enterrar memórias. Ela é um longa-metragem que nunca termina, guardado em gaveta semi-aberta.

‘Sobre todo, creo que
No todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima,
Y yo, soy um vaso vacio...’
(Jorge Drexler)

Por onde remar se as torrentes parecem drenos? Para que outra cidade fogem esses fantasmas do passado?

E assim volto as costas uma vez mais enquanto anoitece. Enquanto cresce aquela mesma sede que me secou os remos para seguir.

[por favor, ouça ‘Al otro lado del rio’, de Jorge Drexler, quando ler]

Saturday, September 30, 2006

Quando algum dia reler

Quanta dor, quanto sofrimento cabe em um livro... Não o que carrega o assunto, a matéria de que tratam suas páginas. Mas a dor do processo, do percurso até sua conclusão. O leitor distante talvez nunca saberá. Tomará em suas mãos e, ao ler suas orelhas e contracapa, pensará que é mais um livro, plano como tantos outros de toda a prateleira.

Aqui, na Livraria da Vila, na seção de Pedagogia, encontro este livro. E este livro tem uma história de dor. Foi antes uma tese, com tudo o que isso quer dizer. Horas e horas contra um prazo estreitando-se, palavras e palavras contra um ouvido diluindo-se. Madrugadas como miragens. Folhas secas na tela diante do computador. Ritos de banca examinadora, ruídos e ignorâncias de acadêmicos sem jazz.

Quem for ler talvez se impressione com o conteúdo, com a mestria do autor em seu raciocínio inteligente, a plasticidade de sua imaginação criadora. Lerá parte de uma vida, rica vida. Entenderá parte de seus valores, nobres valores. Mas sentirá toda essa imensa dor?

Talvez um dia eu o possa reler
.

Wednesday, September 27, 2006

Saturday, September 23, 2006

Para entender sua boa vontade chega

Muitas vezes não nos damos conta da escrita pulsante encoberta pelas luzes da cidade. Que os próprios olhos são incapazes de captar diretamente. É preciso mudar o passo: mais vagar ou pressa; menos rigor na regularidade. Os esboços surgirão como volteios de dança.

Foi assim, camuflado de luzes e boas intenções, que escreveu sua história pela cidade. Nada mais que alguns rabiscos mal preparados: um jeito rude, adoçado por um sorriso confiscante; um saber de senso comum em oratória dominical; gestos suaves mas bem marcados. Ele, todo rabiscos. A cidade, toda noite.

Muitas vezes não nos damos conta dos rabiscos traçados pelas luzes. Foi assim que ele camuflou sua história em uma cidade incapaz de ser vista a não ser de noite. Em seus passos de dança, mal ensaiados, com mais vagar que pressa, mais suaves que sorridentes, deslizava como lápis sem intenção.

Tuesday, September 19, 2006

O outlet da política

Quem circula pelas grandes cidades deve ter notado o fenômeno da multiplicação das lojas de ponta de estoque, os autodenominados ‘outlets’. Atraem compradores com a promessa de reduções: de luxo na decoração, de conforto para o estar, mas também de preço nos itens vendidos. Seu número crescente pode ser interpretado não apenas como a banalização de uma estratégia comercial. Nem tantas ofertas são de fato imperdíveis nem tanta gente acredita mais no rótulo. De um lado busca-se o efeito. Haverá ainda os interessados. Eles estarão dispostos a vasculhar prateleiras e araras à procura de bens de que talvez nem precisem. Mas haverá também quem passe ao largo, desdenhando da sereia que imaginam ter identificado.

Nunca será demais lembrar que só existe política porque existe desigualdade. E o fundamento do poder está no acesso diferencial a recursos (no sentido amplo). Ao longo da história diversas formas de exercício do poder foram experimentadas. Com maior ou menor grau de ampliação do círculo dos incluídos (com acesso); com diferentes níveis de participação dos de fora; e através das mais variadas formas de sedução e uso da força. Em algumas delas há um periódico rito de ajuste de contas e troca de jogadores, processo no qual a maioria da população é chamada a participar.

As vitrines de outlets tendem a ser feias. Parecem servir para anunciar apenas a si mesmas. O que importa é estar escrito ‘outlet’ para que todos saibam que ela está lá, disponível, pronta para ser visitada. E, claro, a marca a que se refere a loja. Quem um dia comprar algo pode passar por elas e achar que fez um bom negócio. Pode simplesmente esquecer. Ou pode achar que é tudo a mesma coisa e se lastimar.

Friday, September 15, 2006

33 rotações e um pouco mais por minuto











Reconstruir a trilha sonora de uma vida é como montar um quebra-cabeça tendo a figura por guia. No instante em que se encaixa uma música, um pedaço da história ganha cor e movimento. Ele parece trazer o sabor do passado, mas seu sentido já terá sofrido irremediável atualização. Não mais aquela inocência de não saber o que viria, nem o gostar pelo simples gostar. As canções passam a carregar a experiência vivida por um tempo para outro muito depois. E assim misturam pontos de vista em cascata.

Será, talvez, como a sensação de quem já teria estado antes em um lugar que visita pela primeira vez. Arrepio de quem pressente algo mais do que mera coincidência. Nada de ‘Twin Peaks’, por enquanto. O olhar de quem percorre esse espaço repete o ouvido de quem reconhece a música. Deixa-se perder porque deseja sentir de novo algo que navega entre dois momentos. Como se liberasse mais uma vez a noite estrelada, com os encantos e feridas que saberá suportar.

Ouvir tais canções é como voltar para casa. Que estará agora desabitada, mas cheia de pedaços distantes.

Não, não é nostalgia. Apenas não desligue o toca-discos.

[ao som de ‘Wichita Lineman’, de Jimmy Webb, na voz de Glen Campbell]
[para Ricardo Neves, um amigo entre dois momentos]

Tuesday, September 12, 2006

Nas horas extremas

Assistir a alguns documentários sobre os acontecimentos de cinco atrás espalha luz sobre os mistérios do comportamento humano. Confrontadas com uma situação extrema, que demandava decisões extremas, as pessoas respondiam com gestos de compaixão genuína por desconhecidos. Arriscavam suas chances de escape pela ajuda a alguém em condição ainda mais desconsolada. É como se nessa hora se reavivasse um sentimento de unidade há muito esquecido. A sobrevivência do outro como a possibilidade de eu mesmo sobreviver.

Parece automático se perguntar por que só em tais momentos essa consciência emerge. E parece quase automática a resposta. Quando as grandes questões ganham o palco é que nossa verdadeira natureza pode se manifestar. Tudo isso parece trivial. Mas por que então ainda consegue nos comover? Por que a mediocridade domina o horário nobre de tantas vidas e deixa a música mais significativa para os créditos finais?

As horas extremas são condensados extraordinários de energia. Concentram em pouco espaço-tempo a totalidade dos recursos de cada um. Como uma aposta única. Relâmpago em busca do chão.

São espelhos.

Wednesday, September 06, 2006

Falta luz


Seu repertório é tão vasto que poderia sustentar dez mil conversas. Mas agora, rumo ao sul, parece mais evidente que os mundos são inapreensíveis um ao outro. Mais ampla ainda é a distância entre os sentidos que cada um constrói fechado em seu canto. Como pode, então, destruir essas molduras pré-fabricadas para as quais sempre tentam empurrar suas palavras e silêncios?

Nada é fácil. Nada é pranto. Fácil ou duradouro.

Ainda que quase ninguém saiba o tempo que falta e falte luz no caminho, as trajetórias continuam mais ou menos inabaláveis. São de esquecimentos que se fazem os dias. Sem dores de consciência ou dúvidas paralisantes. Apenas as necessidades prementes parecem pressionar os que seguem. E assim, em meio a vertigens controladas, os passageiros tratam de seus assuntos individuais.

O esquecimento descreve curvas regulares: espirais ascendentes que se retraem, fazendo piruetas como fumaças. Movimento de quem dança no gelo ou cambaleia tonto quase perdendo os sentidos. Nem um traço daquela vocação retilínea em que teimam acreditar.

Faltam intersecções. Falta alguma coisa que contamine sem maltratar. Assim como aquela inocência de iniciante. Uma voz que desafina por tentar.

Sunday, September 03, 2006

Triangulações



Para motivar seus leitores a responderem a uma pesquisa de avaliação de suas edições (impressa e eletrônica) a revista inglesa Prospect (www.prospect-magazine.co.uk) se compromete a doar um euro por formulário preenchido à organização Médicos Sem Fronteiras. A iniciativa tem plena afinidade com a linha editorial da publicação e faz uso de um recurso nobre adotado por alguns sites da rede mundial: a participação ativa do navegante em par com patrocinadores contribuintes. O internauta clica em um botão e uma empresa ou outra organização contribui com meios materiais para uma causa.

Os links ao lado são de dois sites que defendem a vida. O The Hunger Site doa uma xícara de alimentos não perecíveis a populações famintas do mundo todo; e o Tree 4 Life planta uma árvore a cada clique.

Essa é uma viagem de consciência e compaixão.

Saturday, September 02, 2006

Saída sem centro










Se ainda é possível se perder nesta cidade
Certas partes que ainda renderem
Que seja no claro
Com as placas visíveis, itinerários
Vivas almas sobre as quais caminharias

Mas entendo: por mais que rode
e volte e gire
não é mais com centro qualquer esboço
de saída
que te cai ao colo, desequilibrado
sob essas luzes mal claras
em que caminhas

Monday, August 28, 2006

Respostas novas



No festival de curta-metragens atualmente em cartaz na cidade há um filme de animação de Gitanjali Rao chamado ‘Printed Rainbow’. Nele se representa o cotidiano de uma senhora e seu gato, moradores de alguma grande cidade na Índia. Desde o nascer do dia até o fechar de janelas nada de muito especial acontece. As cenas surgem em tonalidades de cinza a não ser pelas caixas de fósforo multicoloridas que ela guarda em coleção. E que funcionam como motores da fantasia ou sonho. Não parece triste nem resignado. Há uma tranqüilidade cíclica em suas expressões. Os gestos parecem movidos com graça e leveza. Como se os dois planos – com/sem cores, presente/imaginado – fossem extensões naturais e complementares. Que o gato, com sua percepção aguda ao mesmo tempo lúdica, recolhe e mimetiza.

Ontem, esperando ônibus, vejo um cachorro em passeio, puxando uma senhora. Era daqueles alongados, com largas e longas orelhas quase ao nível do chão. Ele passa por mim, depois pára, volta a cabeça e me olha. Olha longamente, olha. Volta-se para a frente e segue.

Thursday, August 24, 2006

IZ









[In memoriam: Israel Kamakawiwo’ole]

‘A terra é como um pequeno barco em meio a perigosa tempestade; por isso temos que ser, nós mesmos, o melhor que pudermos ser. Lembrem-se: uma pessoa é muito importante; uma pessoa é muito.’
Thich Nhat Hanh


O que mais arrepia ouvir em sua voz é essa promessa de uma terra pacificada. Flana como rastilho de incenso, perfume de hibisco ao redor de quem medita em harmonia. E dedilha fácil, aprendo agora, o ukelele. Quase como canção de ninar, parece que brinca com as coisas simples e belas. Em sua face o rosto do pai, da areia branca daquela praia do Hawai’i, dos pássaros e árvores. Um reflexo longínquo em que posso me reconhecer.

Não é um anúncio de utopia nem desejo. Respira através do seu canto uma verdade, uma compaixão com os outros, mesmo crescidos diferentes quase hostis. Como se fizesse de sua voz um braço estendido. Uma doçura que aproxima e alerta.

Ele canta a manhã interior compartilhada.

Parece nascer junto com ‘Over the rainbow’, que desliza suave pelo espaço e tempo que nos separam.

[Agradeço ao Nelson, que me enviou o disco ‘Facing Future’, de Israel Kamakawiwo’ole, direto de Singapore]

Monday, August 21, 2006

Em alguma fronteira, quando a tempestade passar


Logo termina.
Talvez essa impressão faça mais por sua vida que qualquer medicamento ou fé. E deixe pesar menos os vinte um gramas que Iñarritu defende pesar a alma.
Será só então, livre da fantasmagoria animada, uma verdadeira face.

Thursday, August 17, 2006

Estradas


É assim, sem saber a origem – lugar e motivo – que espero. Não importam os sinais contraditórios ou a demora. Deve resultar, de alguma forma. Mas cada vez que olho, o painel toma forma diferente. Por vezes tem uma aparência festiva nas suas cores alegres; outras, escurece como dúvida. Quase um ciclo inteiro de dia-noite.

A manhã já cresce fortemente e muito já se passou. Quanta gente passa... Ninguém permanece.

Em cada canto um deserto em movimento. Assim, sem premissa ou destino. Sem mais espera. E sem conclusão

[ouve-se ‘Roads’, de Portishead, ao fundo]

Saturday, August 12, 2006

Colheita e diálogo


'A perfeição da pedra não vem com os golpes do machado, mas com a dança e a canção da água’ - Rabindranath Tagore
::
Se houvesse água na trilha, doce e movente; o caminho não se apagasse a cada noite. Fosse uma sem mesmo fonte.

A suavidade parece mais difícil que a violência porque não se alimenta de nenhuma paixão.

Tuesday, August 08, 2006

aqui















... e é como um sossego sem parada, paisagem sem parada logo ali onde ninguém quer parar. Nem os ventos conseguem perturbar o vulto eterno assombrado em frente. Como noite prolongada, nada parece nascer

... mas uma luminosidade tardia captura o olhar de quem o contempla sem saber. Pára sem sossegar. Não o segue sem desviar

... quando nada mais parece passar. Ainda mais o encalhe de suas dúvidas, fixas na altura de onde perdeu o sentido do seu passo

... agora que encontra beleza. Uma beleza sem espera

......................................................................... e sem sossego

Friday, August 04, 2006

Lon-Sao sugere















Uma leitura leve para dias de recolhimento:
‘Dicionário do Viajante Insólito’, de Moacyr Scliar
:: para comparar suas impressões sobre as viagens e as aventuras de descobrimento, com bom humor e tempero saboroso, olhando os aviões cruzarem o céu através da janela do seu quarto

Uma peça vigorosa e delicada sobre um tema eterno:
‘R & J’, de Joe Calarco, na montagem do Núcleo Experimental do Teatro Augusta
:: e encontrar jovens e talentosos atores em um texto que alinhava dicção clássica, que ao mesmo tempo alude, complementa e renova o original de Shakespeare

Uma audição densa para dias de solidão e destemor:
‘preyed upon’, de e com Tanita Tikaram
:: para estender a atenção sobre si mesmo, ouvir as vozes interiores e cantar junto, porque a beleza resta tensa e inquieta sobre os dias que ainda virão

Monday, July 31, 2006

Nada além

‘O ser produz o útil
Mas é o não-ser que o torna eficaz’
(Lao Tzu)


Tantas vezes se procurou e a resposta não apareceu. Quanto esforço gasto para pouco resultado. Dias e dias trabalhados na expectativa de recompensas liberadoras. Mas nada. Até a convicção se rompe, como represas mal construídas.

É quando se esquece ou se abandona que aquela sensação de verdadeiro relaxamento se espalha pelo corpo. Uma sensação de vazio, dispensa de cargas. Alguma coisa parecida com paz. Não é preciso discurso para descrevê-lo, nem conceitos para refletir sobre ele. Ou outra, justamente por escapar da rede de pensamentos é que se faz possível esse instante. Quase como aquele estado transitório entre vigília e sono. De contemplação de si mesmo (meditação), unidade com a natureza.

Esse vazio, que sempre está aí, enfim pode ser recuperado. Ele é a própria sabedoria.

Wednesday, July 26, 2006

assim::como














natureza.....................cultura
eternidade...................história
ciclo...........................passagem
nascimento.................migração

Saturday, July 22, 2006

Teoremas urbanos (a partir do cinema)



1. Personagens-símbolo das grandes cidades são anti-urbanas por excelência. O motorista de táxi de Martin Scorsese ou o caçador de andróides de Ridley Scott lamentam, a seu modo, seus destinos. São liminares antes que marginais. Vivem a solidão daqueles que não pertencem inteiramente nem a um nem a outro grupo social. Erram pelos circuitos da cidade. Carregam a revolução em suas armas: devem destruir os que criam sentido pela violência e os que violam o sentido da criação. Não há lastro comum de convivência. A cidade é o mal, condensa o mal. O reforço da cápsula-redoma-carro ou o atiramento para o norte são as vias de negação.

2. O rapaz dá um colar de pérolas furtadas à moça, no final doa ‘Anjos da Noite’, de Wilson Barros. Ela pergunta se são verdadeiras. A resposta modula toda a fabulação: ‘que importa; são belas’. A cidade à noite vive a ambigüidade: o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário, o espontâneo e o representado. Mas importa que ela é bela. Na desordem de múltiplas biografias, expedientes, razões, a cidade expande os limites da percepção.

3. Novamente é Scorsese quem investiga a orientação na metrópole noturna. Em ‘Depois de horas’ é a falta de dinheiro e de um conteúdo de sentido comum que provoca a danação do até então sem-grandes-aventuras protagonista. A sobrevivência na cidade de tantos diferentes depende do que não precisa de linguagem de apoio: o equivalente geral, a intuição, o desinteresse.

4. A dor vem do desejo, segundo um verso budista. Os anjos deveriam saber disso ao quererem se transformar em humanos em Berlim. Entrar na temporalidade – na finitude – é, paradoxalmente, entrar num tempo fixo no presente: o cotidiano. Os mínimos gestos, às vezes grandiloqüentes, parecem não afetar a paisagem construída. Mas a dor parece se inscrever em cada traço. A melancolia da urbanidade é uma história mal resolvida.

Tuesday, July 18, 2006

Despertador-ponte

Não existe antes . Não existe depois

Deve ser assim, como um ponto entre dois mundos. Alguma coisa pouco sensível, perdida flutuante nessa vaga impressão de outra irrealidade. Só mesmo a campainha do telefone para me lembrar que ainda estou na Terra. Para despertar e reconectar ao fora. A partir de fora.

Não foi por acaso que os irmãos Wachowski escolheram o telefone como o meio de comunicação entre os dois universos (vivido e criado) em Matrix (o filme). Esse estranho aparelho deve conter mais que ondas eletromagnéticas e decodificadores de sinais. Qualquer artifício como fios invisíveis estendidos como cordas ao alcance das pontas do interno e externo. Mas em Matrix parece não haver mais foras.

Algum ponto perdido assim entre dois.

Será possível ainda ouvir campainhas como sirenes, acordar de retorno a um mesmo exterior, caminhar por essa lâmina?

Friday, July 14, 2006

Uma segunda chance



Dois ramos de comércio prosperam nestes tempos tão difíceis: salões de cabeleireiro e sebos de livros. Se o primeiro é compreensível, como explicar o último? Será que existem mais pessoas lendo ou a procura se deve aos altos preços dos livros zero quilômetro? Talvez a internet tenha revivido o interesse pela leitura. Ou esses lugares ressumam valores antigos, que a saudade vai buscar.

[Talvez Anaelena saiba dizer]

Algumas ruas em São Paulo ensaiam ser a Charing Cross Rd, ainda que sem casas especializadas, sem organização ou sem grande charme. Mas deve haver procura porque, afinal, elas se multiplicam. Imagino mais vendedores dispensando sua carga preciosa, com pena da destruição, do que compradores curiosos. Mais negócios imperdíveis que achados inacreditáveis.

Nem antiquários nem brechós. Os sebos parecem atender a um gosto de primeira leitura sobre matéria gasta. Uma descoberta em segunda mão. Uma repescagem daquilo que ao mesmo tempo se descartou e não se perdeu.

Nunca comprei livros nessas condições. Nem mesmo discos ou revistas. Mas andar por essas ruas e essas lojas recria um sentimento de tempo represado, escoras diante do escorrer acelerado da maquinaria. As luzes fluorescentes, esquálidas, talvez não o mostrem a um primeiro relance.

Talvez seja isso que elas permitam: ao menos parar.

Wednesday, July 05, 2006

Por uma passagem sem volta


Descendo pela escada rolante para a plataforma de embarque, olho para o teto movediço e perto, placas de escuro corrente, chão para lembranças de misturados tempos, na escala descendente do degrau, que passa. No subsolo de um metrô sem clara localização, estou meio perdido agora quando //// são cortes rápidos em quadros que não se fecham nesse movimento certo, em que mais me afundo.

Fico parado na escada insistente nessa hora morta, na plataforma de memórias. Ao som de atritos rugentes, são os degraus que enfim terminam. O piso firme controla o passo quase cadente, quando é hora de novo se acertar.

Chega o trem. Não servem embarques.
Passa o trem.
////

Friday, June 30, 2006

Extenso e só


Do poeta e. e. cummings sempre me lembro dos versos para sempre de ‘maggie and milly and molly and may’, um prodígio de conceito e sonoridade:

‘may came home with a smooth round stone
as small as a world and as large as alone

for whatever we lose (like a you or a me)
it’s always ourselves we find in the sea’

[‘may voltou para casa com uma pedra lisa e redonda
tão pequena como um mundo e tão grande como sozinha
porque o que quer que percamos (como um você ou um eu)
é sempre nós mesmos que encontramos no mar’]

Além de toda a beleza das imagens, eles ressoam mais ou menos o mesmo que o saber budista zen: o que procuramos não está lá fora, mas dentro de nós mesmos. O que trazemos do mar é apenas aquilo que levamos para lá.

Mas sempre queremos um pouco mais do que achamos, polimos, destacamos. Um pouco mais de quem nos representa, ainda que eles não sejam por nós escolhidos. E nem cabem nos círculos entre a busca e a volta.

As sobras de toda garimpagem parecem se estender por todo o caminho a se perder entre a solitude e o mundo.

Saturday, June 24, 2006

...


Um ano a mais não vale quase nada
quando os passos ao lado silenciam
quanto mais em torno a terra adubo
outono, nascente ao entardecer


...
[a propósito de aniversários, renascimentos e outros acidentes de percurso]

Thursday, June 22, 2006

Para fora de si mesmo


Essas coisas são mesmo meio artificiais. Parece forçado insistir nessas imagens, produtos mentais. Não é sempre assim? Criamos figuras a partir de quase nada: uma ou outra informação solta, algumas preferências jogadas ao acaso, e muita imaginação para preencher o resto.

Talvez pouco sobreviva de tanta elaboração quando se cruza a porta para a rua. Qualquer rua, desde que vigília. Só vale então quando essas imagens perdem as molduras e ficam soltas para ganhar vida própria. Assim elas tendem a nos negar. Ou melhor, a contestar os exageros da vontade. Não serão mais parte de nós. Seu olhar de estranhamento sela um rito de abandono.

Desde quando nascem, frágeis, carentes, até essa emancipação vigorosa, trocam de lado tantas vezes. Alimentam depois vampirizam; caminham juntas, desandam; prometem, para finalmente aniquilar.

Para onde vão, deixam-nos quase sós. Apenas com a companhia delas mesmas, agora como mera lembrança.

Saturday, June 17, 2006

Qualquer passo


Foi um longo caminho até aqui. A mata fechada induzia a se perder, andar em círculos. E quando a trilha se estreitava, as pedras lisas convidavam para o abismo. Quais perigos não estarão sempre em torno na hora que nos pensamos fortes? Trilhas inteiras podem ser vias de queda; todo o trabalho de construção cair como folhas.

Haverá, talvez, certa beleza nessa hora. Agora que as horas correm entre fraquezas espelhadas.

Enquanto segue o curso, enquanto dura o dia, não recolhe nenhuma cinza. De tudo o que resta, seus respiros indicam alguma vida. Ainda não terceira margem, ainda não barco de travessia.

São belas e frágeis as pontes que ergueu ao longo do caminho. Tão incertas quanto os passos como em poucos abraços ao próximo em torno do que ardia.

Sunday, June 11, 2006

O que se deixa ao entrar

No aeroporto de Heathrow (como em tantos outros, imagino), há uma inscrição publicitária naquele verdadeiro free shopping center: ‘as melhores coisas da vida são livres de impostos’. Mais um dos intermináveis trocadilhos que caracterizam esse tipo de discurso. Mas que também podem levar para fora da sua intenção inicial. O que seriam as melhores coisas? Para quem quer categorizar ou normalizar tudo, as respostas devem seguir quase que automáticas ou o caminho das prateleiras fluirá desimpedido. Para quem quer vagar, meia volta para alguma cadeira e um ramalhete de reflexões.

O que escapa aos tributos e à captura do comércio? Até mesmo os pensamentos vivem cercados pelas tramas da compra e venda. Através de cursos, livros, conversas cobradas. Simples trocas são cada vez mais raras. Parecem sobreviver sempre ameaçadas pela intrusão de palavras de ordem, que trazem bugigangas de ordem. Livres de impostos, aquelas ofertas estão, e a um custo reduzido. Mas circulam pela rede social sob o signo de uma intermediação de drenagem. O preço, um selo seco.

Quando seu efeito passar, quer dizer, quando essas melhores coisas estiverem desembrulhadas e sem o feitiço da vitrine, talvez reste o que ficou de fora, como prenunciava aquela outra frase clássica, agora de Dante: ‘abandone toda esperança aquele que entrar’.

Monday, June 05, 2006

Intencionados



Em folhas soltas dentro de livros, feito marcadores, estão lá, anotações quase perdidas, páginas exatas em que se interrompeu a leitura. É estranho encontrar por acaso um pedaço assim de passado. Nenhum rastro mais. Nem a mais. Continuam, sem a falência de Dorian Gray na tela. O pensamento incompleto parece preservado, ainda que rompido com qualquer sentido.

Algumas intenções seguem o mesmo rumo. Mantêm um frescor de inocência, livre das manchas do mundo dos fatos. Respiram a beleza de gestos ensaiados. Todo ensaio. Mas contido em paredes sem janelas. Acabam conhecidas apenas pelos seus autores. Como diria Caio Fernando Abreu, nunca estréiam.

Cartões jamais remetidos, lembretes, poemas, inícios de teses. E aquele secreto desejo de ser completamente diferente com tudo o mais parado como antes. Um panorama em que se pode voar em paraíso cenográfico. Sem os textos desestabilizadores caindo em direção.

Thursday, June 01, 2006

Tremor

Às vezes sinto tremer o chão sob meus pés. Em alguns prédios pareço pressentir um choque de trator. Um metrô passa sob meus sapatos sensíveis. Trovão seco, de pavios curtos, curtos-circuitos desinibidos. Quando então não sei mais o que fazer. Alertar os inocentes? Deixar passar, esperar calmaria?

Mas se repete cada dia. Em andares diferentes, sob carpetes ou tacos descolando, granito, lajotas, piso flutuante. Será um aviso?

O trepidar é o mesmo, variando sapatos, temperaturas ou companhias. Faz agora parte do meu estilo. Fred Astaire sentiria? E quase não reconheço normalidade não havendo esse carinho.

Desço escadas. Não estão lá. Talvez não tenham me aguardado. Desconfio dessas construções antigas. Talvez voltando outro dia. Sei, não há precisão matemática, ou física. Sei lá. Esses espíritos abandonam fácil o caminho das pedras. Não agüentam o concurso do tempo. Então, assim habitam os que têm medo – na segurança dos chãos superados. No plano gasto de fantasmas mortos.

Mas existe trepidação ainda. Em todas as ruas. Quase ninguém deve se acalmar. É duro. Porosamente duro.

Sunday, May 28, 2006

Para viver em duas horas


O que cabe dentro de duas horas?

Desde que foi implantado o bilhete único no transporte coletivo da cidade de São Paulo, esse é o intervalo de tempo em que se pode deslocar por até quatro viagens ao preço de uma tarifa. Tempo de um longa-metragem, aula de inglês, de lavar e secar roupas nas lavanderias, tomar vários cafés e pensar na vida.

Quem souber planejar bem o roteiro tem chance de pagar as contas no banco, cuidar de outras necessidades burocráticas, fazer compras no supermercado. Pode até se dar ao luxo de caminhar lentamente pelas ruas para diferir passos e ritmos.

O prazo do bilhete serve para organizar de alguma forma a vida no espaço fora de casa, ainda que apenas para maximizar o rendimento. A corrida contra o tempo ganha um pretexto real, contabilizável. Novamente é o primado das demandas geradas na exterioridade. Mas, enfim, também permite pesar durações e validades de rotinas e ações esporádicas. Uma espécie de sino, que desperta para o valor das coisas, que faz pensar duas vezes, mesmo que instigado inicialmente pelo filtro do custo monetário.

Tanta coisa dura menos que duas horas. Tanta coisa se arrasta por até duas horas. Dá para chorar e se recompor, enquanto se espera o ônibus certo, como uma senha perdida, um itinerário esquecido. Mas que pode levar de volta. Voltar.

Saturday, May 20, 2006

Há uma esquina em cada crepúsculo


Há uma esquina em cada crepúsculo. E cada volta, uma nova chance de terminar mais vezes. Ali onde não cabem mais horizontes, em quem a busca, incerta, enfraquece. Do lado de fora, do lado do que se expele. Expira.

Não há sinais nem cartografias. Mesmo com os gastos perdidos, parece não haver restos com o que se contentar ou conformar. Qualquer vestígio de sina desaparece com as luzes que se apagam.

Ainda não há pressa. Porque não há vozes. Talvez tenham se enganchado nas outras esquinas. Se aqui viessem poderiam cantar o tango que Manuel Bandeira anunciou.

Respira, que a espera continua.

Tuesday, May 16, 2006

A cidade livre

Assim como a memória é fundamental para administrar o cotidiano, a capacidade de esquecer e se esquivar joga papel decisivo na manutenção da vida social. Pretender que não é da sua conta ou esfera de atuação é uma forma de lavar as mãos, fingir que tudo seria mais fácil sem esses transtornos e seguir. Afinal, a alienação é um escudo conveniente para quem a assume como recurso de negação de autoria ou cumplicidade. Mesmo como vítimas indiretas, muito distantes, apenas por tabela. Mas será admissível continuar inerte diante do avanço da barbárie?

Porque agora se trata de defender, ainda que frágil e mínima, uma possibilidade de civilização. A cidade como espaço de liberdade, como foi no seu início. Um lugar de trânsito e encontro, de expressão e troca. A cidade como um direito.

É essa cidade que se reconhece legítima. E que demanda virtude e consciência na ação.

Saturday, May 13, 2006

Depois de minutos


De onde vem não se sabe, não se inventa. Tem quase a espessura dos feixes de luz dos fins de tarde de outono. Agora que não há mais frutos e expiram todos os dias mais cedo. E fora, como sempre esteve, as mudanças no tempo são mais sensíveis. A terra parece mais doce do que pôde encontrar. Que a ela tornas, segundo ciências e religiões. Talvez por isso, ao som das maritacas e bem-te-vis, faz esvaziar reflexões.

E assim ele ficou, quieto, alerta, sem fixar qualquer pensamento. Deixou o vento passar esfriando, folhas caírem tangentes aos ombros. Esqueceu qualquer preocupação de inutilidade de minutos ou horas passadas sem a pressa de pontos finais. Não causou espanto ou curiosidade. Seus passos seguiram por entre as árvores. Sentiu vontade de abraçá-las, quando ainda rumava pela tarde.

Olhou para trás para confirmar ou abandonar.
Assim foi.