Saturday, September 30, 2006

Quando algum dia reler

Quanta dor, quanto sofrimento cabe em um livro... Não o que carrega o assunto, a matéria de que tratam suas páginas. Mas a dor do processo, do percurso até sua conclusão. O leitor distante talvez nunca saberá. Tomará em suas mãos e, ao ler suas orelhas e contracapa, pensará que é mais um livro, plano como tantos outros de toda a prateleira.

Aqui, na Livraria da Vila, na seção de Pedagogia, encontro este livro. E este livro tem uma história de dor. Foi antes uma tese, com tudo o que isso quer dizer. Horas e horas contra um prazo estreitando-se, palavras e palavras contra um ouvido diluindo-se. Madrugadas como miragens. Folhas secas na tela diante do computador. Ritos de banca examinadora, ruídos e ignorâncias de acadêmicos sem jazz.

Quem for ler talvez se impressione com o conteúdo, com a mestria do autor em seu raciocínio inteligente, a plasticidade de sua imaginação criadora. Lerá parte de uma vida, rica vida. Entenderá parte de seus valores, nobres valores. Mas sentirá toda essa imensa dor?

Talvez um dia eu o possa reler
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Wednesday, September 27, 2006

Saturday, September 23, 2006

Para entender sua boa vontade chega

Muitas vezes não nos damos conta da escrita pulsante encoberta pelas luzes da cidade. Que os próprios olhos são incapazes de captar diretamente. É preciso mudar o passo: mais vagar ou pressa; menos rigor na regularidade. Os esboços surgirão como volteios de dança.

Foi assim, camuflado de luzes e boas intenções, que escreveu sua história pela cidade. Nada mais que alguns rabiscos mal preparados: um jeito rude, adoçado por um sorriso confiscante; um saber de senso comum em oratória dominical; gestos suaves mas bem marcados. Ele, todo rabiscos. A cidade, toda noite.

Muitas vezes não nos damos conta dos rabiscos traçados pelas luzes. Foi assim que ele camuflou sua história em uma cidade incapaz de ser vista a não ser de noite. Em seus passos de dança, mal ensaiados, com mais vagar que pressa, mais suaves que sorridentes, deslizava como lápis sem intenção.

Tuesday, September 19, 2006

O outlet da política

Quem circula pelas grandes cidades deve ter notado o fenômeno da multiplicação das lojas de ponta de estoque, os autodenominados ‘outlets’. Atraem compradores com a promessa de reduções: de luxo na decoração, de conforto para o estar, mas também de preço nos itens vendidos. Seu número crescente pode ser interpretado não apenas como a banalização de uma estratégia comercial. Nem tantas ofertas são de fato imperdíveis nem tanta gente acredita mais no rótulo. De um lado busca-se o efeito. Haverá ainda os interessados. Eles estarão dispostos a vasculhar prateleiras e araras à procura de bens de que talvez nem precisem. Mas haverá também quem passe ao largo, desdenhando da sereia que imaginam ter identificado.

Nunca será demais lembrar que só existe política porque existe desigualdade. E o fundamento do poder está no acesso diferencial a recursos (no sentido amplo). Ao longo da história diversas formas de exercício do poder foram experimentadas. Com maior ou menor grau de ampliação do círculo dos incluídos (com acesso); com diferentes níveis de participação dos de fora; e através das mais variadas formas de sedução e uso da força. Em algumas delas há um periódico rito de ajuste de contas e troca de jogadores, processo no qual a maioria da população é chamada a participar.

As vitrines de outlets tendem a ser feias. Parecem servir para anunciar apenas a si mesmas. O que importa é estar escrito ‘outlet’ para que todos saibam que ela está lá, disponível, pronta para ser visitada. E, claro, a marca a que se refere a loja. Quem um dia comprar algo pode passar por elas e achar que fez um bom negócio. Pode simplesmente esquecer. Ou pode achar que é tudo a mesma coisa e se lastimar.

Friday, September 15, 2006

33 rotações e um pouco mais por minuto











Reconstruir a trilha sonora de uma vida é como montar um quebra-cabeça tendo a figura por guia. No instante em que se encaixa uma música, um pedaço da história ganha cor e movimento. Ele parece trazer o sabor do passado, mas seu sentido já terá sofrido irremediável atualização. Não mais aquela inocência de não saber o que viria, nem o gostar pelo simples gostar. As canções passam a carregar a experiência vivida por um tempo para outro muito depois. E assim misturam pontos de vista em cascata.

Será, talvez, como a sensação de quem já teria estado antes em um lugar que visita pela primeira vez. Arrepio de quem pressente algo mais do que mera coincidência. Nada de ‘Twin Peaks’, por enquanto. O olhar de quem percorre esse espaço repete o ouvido de quem reconhece a música. Deixa-se perder porque deseja sentir de novo algo que navega entre dois momentos. Como se liberasse mais uma vez a noite estrelada, com os encantos e feridas que saberá suportar.

Ouvir tais canções é como voltar para casa. Que estará agora desabitada, mas cheia de pedaços distantes.

Não, não é nostalgia. Apenas não desligue o toca-discos.

[ao som de ‘Wichita Lineman’, de Jimmy Webb, na voz de Glen Campbell]
[para Ricardo Neves, um amigo entre dois momentos]

Tuesday, September 12, 2006

Nas horas extremas

Assistir a alguns documentários sobre os acontecimentos de cinco atrás espalha luz sobre os mistérios do comportamento humano. Confrontadas com uma situação extrema, que demandava decisões extremas, as pessoas respondiam com gestos de compaixão genuína por desconhecidos. Arriscavam suas chances de escape pela ajuda a alguém em condição ainda mais desconsolada. É como se nessa hora se reavivasse um sentimento de unidade há muito esquecido. A sobrevivência do outro como a possibilidade de eu mesmo sobreviver.

Parece automático se perguntar por que só em tais momentos essa consciência emerge. E parece quase automática a resposta. Quando as grandes questões ganham o palco é que nossa verdadeira natureza pode se manifestar. Tudo isso parece trivial. Mas por que então ainda consegue nos comover? Por que a mediocridade domina o horário nobre de tantas vidas e deixa a música mais significativa para os créditos finais?

As horas extremas são condensados extraordinários de energia. Concentram em pouco espaço-tempo a totalidade dos recursos de cada um. Como uma aposta única. Relâmpago em busca do chão.

São espelhos.

Wednesday, September 06, 2006

Falta luz


Seu repertório é tão vasto que poderia sustentar dez mil conversas. Mas agora, rumo ao sul, parece mais evidente que os mundos são inapreensíveis um ao outro. Mais ampla ainda é a distância entre os sentidos que cada um constrói fechado em seu canto. Como pode, então, destruir essas molduras pré-fabricadas para as quais sempre tentam empurrar suas palavras e silêncios?

Nada é fácil. Nada é pranto. Fácil ou duradouro.

Ainda que quase ninguém saiba o tempo que falta e falte luz no caminho, as trajetórias continuam mais ou menos inabaláveis. São de esquecimentos que se fazem os dias. Sem dores de consciência ou dúvidas paralisantes. Apenas as necessidades prementes parecem pressionar os que seguem. E assim, em meio a vertigens controladas, os passageiros tratam de seus assuntos individuais.

O esquecimento descreve curvas regulares: espirais ascendentes que se retraem, fazendo piruetas como fumaças. Movimento de quem dança no gelo ou cambaleia tonto quase perdendo os sentidos. Nem um traço daquela vocação retilínea em que teimam acreditar.

Faltam intersecções. Falta alguma coisa que contamine sem maltratar. Assim como aquela inocência de iniciante. Uma voz que desafina por tentar.

Sunday, September 03, 2006

Triangulações



Para motivar seus leitores a responderem a uma pesquisa de avaliação de suas edições (impressa e eletrônica) a revista inglesa Prospect (www.prospect-magazine.co.uk) se compromete a doar um euro por formulário preenchido à organização Médicos Sem Fronteiras. A iniciativa tem plena afinidade com a linha editorial da publicação e faz uso de um recurso nobre adotado por alguns sites da rede mundial: a participação ativa do navegante em par com patrocinadores contribuintes. O internauta clica em um botão e uma empresa ou outra organização contribui com meios materiais para uma causa.

Os links ao lado são de dois sites que defendem a vida. O The Hunger Site doa uma xícara de alimentos não perecíveis a populações famintas do mundo todo; e o Tree 4 Life planta uma árvore a cada clique.

Essa é uma viagem de consciência e compaixão.

Saturday, September 02, 2006

Saída sem centro










Se ainda é possível se perder nesta cidade
Certas partes que ainda renderem
Que seja no claro
Com as placas visíveis, itinerários
Vivas almas sobre as quais caminharias

Mas entendo: por mais que rode
e volte e gire
não é mais com centro qualquer esboço
de saída
que te cai ao colo, desequilibrado
sob essas luzes mal claras
em que caminhas