Monday, November 27, 2006

F e G

Falava fácil, com afeto,
voz afável, aflanelada
Uma face fina
falava flores sem fim

Mas foi se esfalfando
engrenada pelas garras
grifos, gruas
que por aí grassavam

Engradada,
só de grunhidos
grasnou seu fim

Thursday, November 23, 2006

Mais leveza


Pelo menos os fins de dia arrebatam em cores o que o resto pode ter subtraído de vozes. Duram pouco, mas são minutos para ganhar vôo sobre qualquer assunto terreno. Para se encontrar em meio ao imenso vazio lá em frente, tão presente já do lado. Não pensar em nada, esvaziar.

Em cada final podes extrair beleza. Em cada sobrevôo, refúgio. Agora que o dia parece parar.

Deixa assim terminar a jornada como talvez nunca comece. De uma forma sutil como a mudança das cores. Ilusoriamente bela, como só quem finda junto pode perceber.

Saturday, November 18, 2006

Vidros agudos

Mais uma peça de vidro se quebra. Desta vez é um porta-retrato. Das duas placas finas sobre pequenos pedaços de madeira, os cantos ficam moídos e um risco diagonal percorre toda a superfície. Minha foto noturna, na praça do Sol em Madri, parece rasgada. Mas não. Ela sai intacta. É apenas o vidro que se vai.

Gosto de vidro. Da sua transparência quase cristalina. Dessa fragilidade, que toda hora faz lembrar de uma finitude ali, depois da esquina. E o caráter meio dúbio, que às vezes permite transpor e em outras devolve a cena – um pouco de cada, dependendo do ângulo, da luz, de quem.

Busco vidros. Em peças para uso ou contemplação. Copos, pesos para papel, drusas de cristal e até mesmo um Buda holográfico. Um dia, por algum descuido ou acidente, como agora há pouco, o susto revirará o encanto da matéria. Só o trabalho de recolher todos os cacos trará de volta a aridez da areia.

Guardo a foto como os cacos. Qual deles guardará mais feridas?

Sunday, November 12, 2006

Sem férias

Depois de encerrado o filme, saio para a Consolação e viro em direção à Paulista. É começo de noite, as lâmpadas começam a se acender, mas ainda há luminosidade do dia. Caminho entre muitos passantes em pressa sob um silêncio interior. Algo está diferente. Como se a atmosfera do filme houvesse contaminado minha visão da rua. Não deveriam me entender, mas será que perceberiam? Todos agora faziam parte da história, personagens que ganhavam novo significado e pareciam reverberar as cenas daquele ano de 1970.

Andava devagar, mais do que de costume. Talvez porque quisesse respirar mais fundo, deixar decantar toda a delicada tessitura das vidas fictícias. Não que fossem parecidas com a minha. Escassa tangência. O silêncio, que agora se espraiava a todo o entorno, me aproximava mais de toda essa gente. Nem mesmo a velocidade e a turbulência dos carros e passos conseguem alterar o ritmo de câmara lenta.

Faz frio, o vento mais frio. Nos muitos rostos pareço encontrar algum sentido de fraternidade que me faz andar junto, por menos real que ela seja. Talvez nada além de uma ilusão produzida pela falta de palavras. Uma frágil ligação pelo espaço vazio assim aberto. Na ausência de sons as fraturas deixam de parecer abismos.

O silêncio nos aproxima.

::

[O belo filme de Cao Hamburguer, ‘O ano em que meus pais saíram de férias’, está em cartaz no cine Belas Artes, em São Paulo.

Além de tudo o que já se disse a seu respeito, vale escrever que ele acompanha o roteiro de transformações de humanos sem a metáfora comum da viagem. Bem ao contrário de um road movie, ‘O ano...’ tem como lastro das mudanças o espaço fixo de um bairro, o Bom Retiro. Estar na cidade, viver a cidade permite criar variadas atmosferas e situações de decantação das experiências. Não só pelos encontros mas também muito mais pelo isolamento e silêncio que só nascem da vida difícil na urbanidade.

Que a história do filme possa nos atingir é um respiro feito dor sem linimento.]

Wednesday, November 08, 2006

O segundo passo













Ele percorre longos trechos a pé.

A cada dia pensa ser diferentes porque vira esquinas antes não trafegadas, atravessa ruas em lugares pouco prováveis, faz zigue-zagues onde menos se espera. Mas não deveria se iludir. Ao invés de segmentos de reta, seus percursos descrevem espirais. Ele sempre retorna ao mesmo ponto, mais velho, mais cansado.

Seus percursos são roteiros de um relógio externo. Precisa caminhar para não perder o ritmo. Qualquer distração pode animar o andarilho, aliviar o fardo desse maquinismo. Esquecer. E esquecer poderia ser bom, se não houvesse tanto entulho soterrando-o.

Andar é abrir frestas para respiro.

Os repetidos esforços começam a fatigar. Mesmo aquilo que lhe assegura vida agora parece pedir ajuda. Não basta cessar o movimento ou tomar água. Nem talvez seguir outro rumo. É quase certo que ele não saiba o que fazer. Ou que não deva existir mais nada.

Mas os ponteiros continuam sua jornada.

Thursday, November 02, 2006

Talvez quase













[para ler ao som de ‘He´s got the whole world in his hand’ (trad.), na voz de Nina Simone]


Já não estranho nem me importo
Com o tanto que ficou inacabado
Conversas, encontros, jogos
Interrompidos no primeiro estalo

Parece mais previsível e rápido
O que antes surpreendia, durava
Segue agora como um hábito
Que apenas embaraça

Fosse de chumbo, fosse de asas
Se caísse fundo ou voasse
Poderia não valer mais nada
Mas talvez pouco, talvez quase