Tuesday, November 22, 2011

E agora?

‘Amanhã é um outro dia não é’
- Renato Russo (in ‘A Via Láctea’)

Desespero é fazer as mesmas coisas sabendo que não passa. Não há fresta, não adianta. Ainda demora.

E os dias decantam. Sem altas ou escolhas. Mas duram.

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foto: detalhe do acesso à estação de trem Cidade Jardim, na zona sul de São Paulo, por R.I.

Thursday, November 17, 2011

Segunda imagem

Sempre vi o mundo menor do que era. Por conta das lentes divergentes a imagem corrigida se mostrava reduzida. Nenhuma coisa tinha uma exata correspondência, como distância alguma deveria ser real.

Durante anos os óculos comprimiram a vida e a filtraram numa espécie de cinema sem tela fixa. Eles tornavam nítido o que era preciso, ainda que não necessariamente. Exato, apenas quando desfocado, borrado.

Talvez isso tenha contribuído para criar uma desconfiança quanto à veracidade do que se apresenta à vista. A realidade parece se decompor em graus a um movimento das mãos. Não é nada muito certa, nem se estende na medida do que se percebeu da primeira vez.

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foto: detalhe da obra ‘Microscópio para São Paulo’, de Olafur Eliasson, na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, por R.I.

Saturday, November 12, 2011

Soltar as cores

Ele aproximava as cores da sensação de liberdade. As cores de cada vida: frutas, flores, pássaros, ventos. Para onde quer que olhasse encontraria ainda um rastro, um memo, passos de luz restante. Em cada cor aprofundou sua pausa. Deitou sua calma e se deixou ficar. Não adormeceu. Antes, foi como acordar de um salto, perder o rumo e jogar cada pedaço embora.

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foto: detalhe da instalação ‘Seu corpo da obra’, de Olafur Eliasson, no Sesc Pompéia, São Paulo, por R.I.

Wednesday, November 09, 2011

Cada pequeno fim

Começo de noite, parque para fechar, alguns gatos surgem por toda a parte. São brancos e pretos, parecem tranqüilos. Não há final de história para eles. Nas alamedas vazias estão sentados ou deitados, lambem o corpo e são indiferentes aos visitantes que passam. Estarão se sentindo sós?

As luzes são acesas. Menos movimento ainda. O pavão no alto da árvore entoa seu canto. O domingo continua a findar.

Pelas ruas quase ninguém. Assim é por muitas horas, cada vez mais escuro. E mais uma vez aparecem pálidas imagens, cortadas feito feixes à frente, no piso, contra as paredes. Definham como os passos, lentos.

Não há chegada. E nem termina por completo.

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foto: detalhe de ‘Seu Planeta Compartilhado’, instalação de Ólafur Eliasson, no belvedere da Pinacoteca do Estado, no bairro da Luz, em São Paulo, por R.I.

Wednesday, October 26, 2011

O que vai

Cada ensaio de cura o leva mais um dia. Para longe daqui, outro corpo. Ventos de barulho, chuvas contínuas. Lá fora tosses escorrem, curvas sem fim. Largaram seu pulso. Não abandonam sua vez.

Sunday, October 09, 2011

A meio caminho

Deve ser parecido com morrer. O corpo fica pesado demais para levar de um lado para o outro. Olhando de fora, do alto, não se sente mais participar dessa matéria. Os nervos não respondem. Falta energia, um mínimo que seja para terminar de atravessar a avenida. Quase se vai de vez. Ainda assim, nada parecer tirá-lo do torpor que o atira e o contém. Estar doente é um ensaio. Mas não se sabe como terminará.

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foto: bambuzal no parque do Ibirapuera, São Paulo, por R.I.

Tuesday, October 04, 2011

Andar

Ando em direção a um compromisso de trabalho; anoitece com pressa, pessoas saem à espera dos ônibus, rodas e rodas se esquinam; a cidade muda de ritmo e cor. Ando a caminho da escola, menino, com a pasta cheia de cadernos e livros, uma confiança de conhecer mais o mundo; seguro um doce de amarelo artificial, bananinha falsa mais doce, aroma industrial; a cidade parece ficar em torno, casa colégio. Ando de volta do emprego, jovem, num percurso longo, da metrópole à periferia, subúrbio, cansaço frustrado de tempos tomados; olho mais baixo para os paralelepípedos refletindo as luzes de mercúrio; a cidade se contrai, mais ampla que o dia que se desperdiça. Ando como se parasse a cada ano, sabor em sabor, subindo descendo escorregando, imaginando as histórias de uma e outra janela iluminada, enquanto me visitam o menino, o jovem, o agora há pouco; e sinto andar comigo todos eles.

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foto: trecho da rua Dona Paulina, no centro de São Paulo, por R.I.