Monday, April 28, 2008

Estar lá

Deveria ser o verdadeiro aniversário da cidade. Os prédios históricos ganharam uma iluminação festiva e as ruas do centro, um público imenso. Por todos os cantos que se passava alguma surpresa de encenação ou descoberta. Acrobatas, estátuas vivas, músicos amadores, atores, cantores desconhecidos ou afamados, uma atmosfera de reveillon.

A bicicleta traça seu rumo sobre a terra, dezenas de metros mais por sobre viaduto e avenida. Não é vôo nem rodagem. Sustentada por um balão e por um fio, ela desliza como se apenas passasse. Surgiu inesperada, lenta se vai e volta depois que os que pedalam descem pelos cabos. De olhar para cima as cabeças giram para se perder e pousar em outros passos.

Em um pequeno palco alternativo de dança, no vale do Anhangabaú, um jovem casal desata sua coreografia, de desencontros e invenção. Algumas poucas pessoas atentam para eles, fim de tarde. Quando termina, outras menos chegam para conversar. Um senhor de experiência marcada no rosto, nos braços, vem estender um pedaço de papel e pedir para que o dançarino escreva ali seu nome. A princípio ele estranha mas enfim compreende. Aquele homem havia sido tocado pela arte. Ele está salvo.

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foto: palco Piano na Praça (Dom José Gaspar), atrás da Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, na Virada Cultural do ano passado, por Ricardo Imaeda

Wednesday, April 23, 2008

Os espíritos da terra

:Quando os móveis tremeram, fazendo meu corpo tremer, olhei para trás, para os lados, como se eles fossem visíveis. Como se aquela sensação viesse explicada, razoável. Agora que a estranheza, enfim, podia ser sentida nos ossos, chacoalhados na sua tentativa de segurar o que parecia cair. Poderia ser poltergeist. Alguma força desconhecida querendo se notar ou exercer seu domínio.

Só depois viria a notícia e o nome para classificar e encaixar. Mas na hora o sem sentido é o que mais agudamente fazia pesar o que podia ser sentido. A terra, enfim, tremia. Com a contundência que apenas o desconhecimento pode abarcar.

::[após o terremoto que atingiu São Paulo e outras muitas cidades do país]

Saturday, April 19, 2008

Outono pulmões

Pode o frio chegar com o vento, o tempo incerto, a luz tangente. No outono a vontade é de abastecer a casa. Talvez como lembrança de um passado remoto, guardar suprimentos para atravessar as maiores dificuldades. A estação inspira com seus frutos e mudanças bruscas. Guardar, conter. E, com os sabores mistos de estranhamento e descoberta, sair para se reconhecer em cada fragmento do mundo.

::foto: mangostim por Ricardo Imaeda

Monday, April 14, 2008

O caminho não trilhado

[ao som de ‘Pavane’, de Gabriel Fauré, na versão de Branford Marsalis e English Chamber Chorus]


Dali para diante seria assim, dividido entre as escolhas despontando no caminho, cada uma misturada a outra, promessas mal acabadas, histórias divergentes. Quanto mais próximo do ponto de separação mais o olhar se afasta do horizonte e se perde nas ondulações do terreno. Tenta fazer do obscuro um espelho, à espera do movimento. Talvez ali se encontre alguma pista, uma ajuda para decidir.

Talvez ali se passe inteira uma geração. Na esquina das coisas por vir.

[inspirado pelo poema ‘The road not taken’, de Robert Frost]

::foto: encontro da avenida Pedroso de Morais e rua dos Macunis, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, April 07, 2008

Destraços

Como se apostasse que o prazo estivesse perto do fim, os meses contados, histórias como contos, começos e meios. Para que se preocupar com esgotamento de recursos se o próprio tempo já o ameaçava de forma tão cinematográfica? Cada novo passo era, assim, sem necessidade ou objetivo.

As linhas enfraquecidas já o limitavam menos, e menos desenhavam um destino ou parada intermediária. Saía qualquer hora do dia sem roteiro, quando tinha vontade de andar. Caminhava como na contramão, baixa velocidade, um estrangeiro em língua nativa.

Era parecido com suas lembranças: surgiam do nada, duravam pouco, diluíam-se enquanto outras mal combinavam significado e repetição.

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[ao som de ‘Não sei’, de Gaya e Aloysio de Oliveira sobre tema de Chopin, na voz de Ithamara Koorax]

::foto: detalhe da praça Júlio Prestes, em frente à estação de mesmo nome, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, April 02, 2008

Nenhum lugar

Como é difícil seguir o curso...
Não há nado nem saber, companhia ou cenário nesta hora descida. Os mapas perderam definição e a memória se refugia em casa. Dessas pedras todas nenhuma parece indicar alguma coisa além de si mesmas.
Ali pode ser, não mais, talvez.
Dia e dia atormentam e dia e dia desbastam o mesmo terreno, que dia e dia se estancam e não se vão.

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[ao som de ‘Somewhere’, de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, na voz de Marilyn Horne – parte da trilha de ‘West Side Story’, em cartaz na empolgante versão brasileira de Jorge Takla, no teatro Alfa, em São Paulo]

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foto: por entre as árvores o viaduto Santa Ifigênia, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda; um dos mais belos da cidade, foi, por muitos anos, junto com o viaduto do Chá, a única ligação entre o Centro Velho e o Centro Novo, por sobre o rio Anhangabaú