Saturday, February 23, 2008

No sono da terra

‘E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra
Não há’
- Dorival Caymmi

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Em qualquer fresta cabe um universo
Uma cor, finalzinho de luz
Enquanto a cidade ensaia descansar
Na vigília que extrai do incerto

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foto: praça do pôr do sol, Alto de Pinheiros, na terra de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, February 22, 2008

Palavras ásperas para esperas secas

[ao som de ‘Só você manda em você’, versão de ‘You’re a big girl now’, de Bob Dylan, por Vitor Ramil]

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Ele fala como se criasse mundos. Como se suas frases fizessem acontecer. Se palavras por si só agissem na autonomia das vontades. É assim nos diálogos do cotidiano, nas propostas de relacionamento, nos discursos de candidatos. Parecem suprir o desejo de ficção da audiência. Ouve-se como se fosse pela primeira vez, agora que a memória falha e a atenção se distrai nos sentidos mais imediatos dos verbos, substantivos.

As palavras arrastam, acreditam. Ou querem acreditar. Nessa função servem para substituir outros ritos mais trabalhosos, como os gestos, as ações mínimas que movimentam a roda.

Não são veículos de conhecimento. Não acrescentam sabedoria porque não se prestam a nada mais que lembrar de si mesmas. Para quem ouve deve ser como esses programas de culinária da televisão: sugerem sem entregar, saciam sem sustentar.

Quanto se fala se perde na camada de ozônio, carbonos queimados aquecendo o planeta sem trégua.

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foto: detalhe da fachada do Centro Cultural São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, February 18, 2008

Antes do fim, se fim houver

[ao som de ‘Quero que vá tudo pro inferno’, de Roberto e Erasmo Carlos*]
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Segundo um programa do History Channel, o mundo vai acabar no dia 21 de dezembro de 2012. O documentário mostra as previsões de alguns oráculos antigos e de mecanismos atuais da internet que, por vias diversas, coincidiriam na data do apocalipse. Se outros prazos já foram antes anunciados e naufragaram, esse ganha o charme dos números mais ou menos em anagrama, do solstício em que se alinham planeta, sol e campos de energia desconhecidos. Além do empurrão dos desvarios da humanidade.

O programa ressalta que esse tipo de vaticínio funciona para conclamar as pessoas a valorizarem o tempo que lhes resta e a viver de forma significativa. Como os saberes que tratam da morte no plano individual. Mas se poderia pensar também, e em linha contrária ao dos manuais de auto-ajuda, que estipular uma data é meio caminho andado para esquecê-la. Quem vai se lembrar se não for continuamente atualizado do escorrer da areia?

Qualquer que seja a atitude diante dela, é uma informação que terá seu teste de verdade apenas no dia seguinte ao presumido fim. Ou: na observação do que já não poderia mais ser observado. Quer dizer, a consciência só poderia se realizar enquanto possibilidade, chegar à borda do acontecimento e não se completar, porque afinal o próprio conhecedor desapareceria com o fim do seu mundo.

Só existe fim quando existe alguém capaz de o perceber.

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*: é uma pena que Roberto renegue essa canção, uma das mais inspiradas de sua carreira, e que ganhou uma vibrante interpretação pela banda portuguesa GNR (Grupo Novo Rock)

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Tuesday, February 12, 2008

Fora

[ao som de ‘Blue Moon’, de R. Rodgers e L. Hart, na voz de Billie Holiday]


Quando me esqueço do que guardo,
quebro grades, graves quinas
Quase grito, quase ganho

Esqueço-me agora
em quadros e gumes
em quartos minguantes

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Foi assim, há muito tempo, quando chegar à cidade grande era uma promessa de vida melhor. Na largura das avenidas e no trânsito frenético havia mais do que um desatino de multidões. Mais do que a correria pela sobrevivência. Dar seus primeiros passos sobre essas calçadas era estar dentro, enfim.

Não estranharia mais nada. Se havia pulso, haveria sentido. E havia os outros. Um mistério que persistiria e muito. Porque decifrá-los estava ainda além de sua capacidade. Só os outros poderiam enganar.

Até que se cansou de tentar entender. Mal se esgotava o estoque de fascínio, era demais o fardo de fora.
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foto: detalhe da Catedral da Sé, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

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[texto originalmente publicado em blog anterior, no Livejournal]

Wednesday, February 06, 2008

Cada vez que vem de novo

Para quem consegue sobreviver nessa vida de incertezas talvez não seja tão terrível se deparar com as repetições. Elas marcam uma espécie de circularidade, um eterno retorno que conforta, dá uma sensação de familiaridade nesse mundo de sobressaltos. O que se pode reconhecer, afinal, não pode exercer mais seu pleno domínio. Quando muito chega como um estranho domesticado, um inimigo íntimo, como dizia aquele dramaturgo.

Mas também o preço a pagar parece ser diretamente proporcional ao grau de redundância: quanto mais o mesmo se expressa, mais aborrecido é continuar nessa tocada. De tal forma que a escolha fica sendo entre o susto e o enfado. Se fosse filme, entre o suspense e a comédia de costumes.

Como a espécie humana (ou uma facção influente dela) parece hábil na negociação, uma solução intermediária foi barganhada de forma obscura, talvez corrupta. Há uma suspensão da crítica e das ilusões e tudo o que se poderia identificar como próximo aparece como desconhecido, longínquo. Um auto-engano consentido, mezzo consciente mezzo sonâmbulo. Se fosse filme seria de aventura, cheio de ação e reviravoltas, ou uma comédia romântica, com desencontros e encontros. Em ambos haveria um acordo tácito, um compromisso de final feliz. Porque já se sabe tudo de antemão. Só não se conta para não perder o encanto.

As repetições são um caldo de covardia. Imobilidade no certo contra movimento no duvidoso. Descanso em carrossel. Alimentam para melhor entorpecer; se exibem com arrogância para então retrair sem a menor compostura.

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foto: detalhe do Jardim Botânico em São Paulo, por Ricardo Imaeda

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[originalmente publicado em blog anterior no Livejournal]

Friday, February 01, 2008

Pisos em transtorno

Além dos muitos prédios em construção outras interferências fazem da cidade um canteiro de obras. Em várias ruas a substituição das calçadas testa a habilidade do caminhante em transpor obstáculos. Pedras, areia, terra, entre outras substâncias não identificadas sedimentam de aventura qualquer percurso. Nada mais segue em linha reta nem sobre superfície plana. Há que se olhar constantemente para o chão sob risco de tropeços e quedas.

E é por essa trilha de sobressaltos que o estudante avança e recua. Um novo idioma, uma nova arte. A cada passo o desequilíbrio do piso que vai sem o apoio do próximo em espera, ao lado.

Uma estreita faixa da rua às vezes é conquistada, tangente a carros e ônibus inóspitos. Como pontes movediças, balançam e instabilizam ainda mais o pedestre, aprendiz. São quadras e quadras nesse improviso até que trechos acabados prometem algum conforto. Mas é só firmar a pisada que a lajota se sente frouxa. Parece flutuar na aparência do sólido.

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foto: praça da Sé, São Paulo, por Ricardo Imaeda