Tuesday, November 22, 2011

E agora?

‘Amanhã é um outro dia não é’
- Renato Russo (in ‘A Via Láctea’)

Desespero é fazer as mesmas coisas sabendo que não passa. Não há fresta, não adianta. Ainda demora.

E os dias decantam. Sem altas ou escolhas. Mas duram.

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foto: detalhe do acesso à estação de trem Cidade Jardim, na zona sul de São Paulo, por R.I.

Thursday, November 17, 2011

Segunda imagem

Sempre vi o mundo menor do que era. Por conta das lentes divergentes a imagem corrigida se mostrava reduzida. Nenhuma coisa tinha uma exata correspondência, como distância alguma deveria ser real.

Durante anos os óculos comprimiram a vida e a filtraram numa espécie de cinema sem tela fixa. Eles tornavam nítido o que era preciso, ainda que não necessariamente. Exato, apenas quando desfocado, borrado.

Talvez isso tenha contribuído para criar uma desconfiança quanto à veracidade do que se apresenta à vista. A realidade parece se decompor em graus a um movimento das mãos. Não é nada muito certa, nem se estende na medida do que se percebeu da primeira vez.

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foto: detalhe da obra ‘Microscópio para São Paulo’, de Olafur Eliasson, na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, por R.I.

Saturday, November 12, 2011

Soltar as cores

Ele aproximava as cores da sensação de liberdade. As cores de cada vida: frutas, flores, pássaros, ventos. Para onde quer que olhasse encontraria ainda um rastro, um memo, passos de luz restante. Em cada cor aprofundou sua pausa. Deitou sua calma e se deixou ficar. Não adormeceu. Antes, foi como acordar de um salto, perder o rumo e jogar cada pedaço embora.

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foto: detalhe da instalação ‘Seu corpo da obra’, de Olafur Eliasson, no Sesc Pompéia, São Paulo, por R.I.

Wednesday, November 09, 2011

Cada pequeno fim

Começo de noite, parque para fechar, alguns gatos surgem por toda a parte. São brancos e pretos, parecem tranqüilos. Não há final de história para eles. Nas alamedas vazias estão sentados ou deitados, lambem o corpo e são indiferentes aos visitantes que passam. Estarão se sentindo sós?

As luzes são acesas. Menos movimento ainda. O pavão no alto da árvore entoa seu canto. O domingo continua a findar.

Pelas ruas quase ninguém. Assim é por muitas horas, cada vez mais escuro. E mais uma vez aparecem pálidas imagens, cortadas feito feixes à frente, no piso, contra as paredes. Definham como os passos, lentos.

Não há chegada. E nem termina por completo.

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foto: detalhe de ‘Seu Planeta Compartilhado’, instalação de Ólafur Eliasson, no belvedere da Pinacoteca do Estado, no bairro da Luz, em São Paulo, por R.I.

Wednesday, October 26, 2011

O que vai

Cada ensaio de cura o leva mais um dia. Para longe daqui, outro corpo. Ventos de barulho, chuvas contínuas. Lá fora tosses escorrem, curvas sem fim. Largaram seu pulso. Não abandonam sua vez.

Sunday, October 09, 2011

A meio caminho

Deve ser parecido com morrer. O corpo fica pesado demais para levar de um lado para o outro. Olhando de fora, do alto, não se sente mais participar dessa matéria. Os nervos não respondem. Falta energia, um mínimo que seja para terminar de atravessar a avenida. Quase se vai de vez. Ainda assim, nada parecer tirá-lo do torpor que o atira e o contém. Estar doente é um ensaio. Mas não se sabe como terminará.

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foto: bambuzal no parque do Ibirapuera, São Paulo, por R.I.

Tuesday, October 04, 2011

Andar

Ando em direção a um compromisso de trabalho; anoitece com pressa, pessoas saem à espera dos ônibus, rodas e rodas se esquinam; a cidade muda de ritmo e cor. Ando a caminho da escola, menino, com a pasta cheia de cadernos e livros, uma confiança de conhecer mais o mundo; seguro um doce de amarelo artificial, bananinha falsa mais doce, aroma industrial; a cidade parece ficar em torno, casa colégio. Ando de volta do emprego, jovem, num percurso longo, da metrópole à periferia, subúrbio, cansaço frustrado de tempos tomados; olho mais baixo para os paralelepípedos refletindo as luzes de mercúrio; a cidade se contrai, mais ampla que o dia que se desperdiça. Ando como se parasse a cada ano, sabor em sabor, subindo descendo escorregando, imaginando as histórias de uma e outra janela iluminada, enquanto me visitam o menino, o jovem, o agora há pouco; e sinto andar comigo todos eles.

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foto: trecho da rua Dona Paulina, no centro de São Paulo, por R.I.

Monday, October 03, 2011

Tão veloz como os neutrinos

Em um experimento conduzido há pouco cientistas constataram que neutrinos viajaram a uma velocidade superior à da luz, contrariando um pensamento até então tido como uma verdade absoluta.

Talvez para muitos essa informação seja irrelevante, não modificando nada na sua forma de viver a vida. Afinal, o que representariam essas partículas minúsculas em meio à enormidade de seus problemas? Mas saber do questionamento de uma certeza tão fundamente arraigada pode fazer estremecer outras tantas. Abre possibilidades onde antes apenas paredes se estendiam. Intuições em meio às palavras. Alguma chuva depois de baixas umidades relativas do ar.

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foto: geodo de ametistas, por R.I.

Monday, September 26, 2011

Seco, sem ilusões

Não perder ou perder pouco. Talvez seja isso que o tenha guiado em meio ao caos desses anos todos. As linhas se rompendo, pessoas desaparecendo. Sem mais a espera de outros tempos. E nem mesmo a nostalgia. Devia ser essa a experiência do deserto: terra seca para alma desidratada, miragens despidas pela desconfiança.

Assim era, como há muito agora.

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foto: detalhe do marco zero, na praça da Sé, centro de São Paulo, por R.I.

Wednesday, September 21, 2011

Cá, longe

[ao som de ‘Mistake’ de Moby]

Olhando em retrospecto, várias vezes ao longo da vida esteve diante de encruzilhadas. A cada escolha o percurso poderia mudar completamente. Tantas vezes a história poderia ter terminado ali, depois de pouco tempo. Quantas possibilidades ficaram sem nascer, memórias sem dono nem esperança. Mas inteiras.

E a biografia foi se completando, tintas secas por vales cadentes. Em novas visitas mais gastas que redivivas. Mais paisagens que não podem ser tocadas, nem abandonadas. Presentes.

A trilha não experimentada é um fantasma. De óculos. Assombração que devora humores das estações.

:: foto: segmento da estrada Cunha-Paraty em dia de chuva, por R.I.

Wednesday, September 14, 2011

O que muda

Nos livros e filmes as grandes mudanças na vida vêm quase sempre acompanhadas de deslocamentos no espaço. Parece que a viagem para lugares distantes, ou apenas diferentes, funciona como um sinalizador inequívoco de que uma transformação de fato ocorre. O ambiente espelha o interior.

Perder-se em uma cidade, oferecer-se a toda sorte, funciona como um ato purificador – um ritual de renascimento. Assim devem querer os autores. Mas quem olha para o mutante talvez o perca em suas escolhas, suas dúvidas. Ignorará a jornada, ainda que perceba o refugiado. Ao outro persistirá a superfície, a face. Em parte do que será de novo o outro.

Será possível mudar sem vencer a barreira da pele? Sem se mover dos limites habituais, sem sair dos espaços conhecidos?

Aquele que procura parece estar um pouco além do aqui hoje. Ao mesmo tempo andou e ficou. Seu olhar parte, a paisagem ganha novo sentido. Tudo se mexe, cada coisa volta a seu lugar. Olha com estranhamento, senta-se e toma um chá enquanto pássaros cantam ao fundo.

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foto: cúpula do orquidário Ruth Cardoso, no parque Villa-Lobos, zona oeste de São Paulo, por R.I.

Friday, September 09, 2011

Concentrar diluir

Contra o ritmo veloz do fazer humano, o caminho. Diante dos dias reduzidos a minutos, me lembro de atentar para os passos, voltar aos respiros. A cidade com que tanto simpatizo precisa de tempo. De espaço para que o desequilíbrio possa se alargar em quedas, que dores se diluam na profusão dos outros afetos. Enquanto passam os tormentos. Fluentemente passam.

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foto: pedras no percurso da cachoeira e do rio Pinhalzinho, em Joanópolis, estado de São Paulo, por R.I.

Saturday, August 27, 2011

Um café para dar força

Que o café que absorves em silêncio possa sustentar a clareza e a luz que irradias, ainda que febre e tropeços arranhem pelo caminho. Mantenha-te alerta na disposição com que alegras noites e dias dos que compartilham teus passos. Acolha e aconchegue nas horas escuras com seu vigor para ajudar nas travessias.

Abraço forte.

: para A. com carinho e compaixão

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foto: detalhe do mini cafezal no Memorial do Imigrante, Mooca, São Paulo, por R.I.

Wednesday, August 17, 2011

As árvores da vida

As cenas ganham peso e significado através da câmara de Terrence Malick. Em ‘A árvore da vida’ cada pedaço do mundo passa a nos pedir mais atenção. Talvez não para caber em explicações, ainda que muitos espectadores assim o queiram. Mas simplesmente para lembrar que as coisas vão além do que se costuma pensar. Além das frações de segundo que a elas costumamos dedicar.

Olhar para as árvores como mais do que árvores, mais do que vidas. Para as águas, para a terra. Mais do que natureza, mais do que graça. Talvez mais do que comporte a tela, suporte a vida. Como um mistério em toda a sua simplicidade. Que só exige um pouco de tempo a mais para que possa se manifestar.

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foto: crepúsculo a partir da praça do por do sol, no Alto de Pinheiros, São Paulo, por R.I.

Saturday, August 13, 2011

Allegro vivace

A moça tocando violino na esquina da Paulista e Augusta, lembrei de Londres. Começo de noite, rios de pessoas entrando no metrô, luzes se acendendo, câmaras fotografando. Sexta-feira. A vida dá um nó. Eles parecem felizes.

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foto: anoitecer na avenida Paulista, por R.I.

Monday, August 01, 2011

O vazio luminoso

Não existem mistérios na vida cotidiana. As coisas se revelam na sua natureza física, sem magia ou transcendência. Pedras são pedras e árvores, e pessoas. Serão sempre pedras e tudo o mais com vida passageira. Quem olhará assim para o seu redor?

Nas pequenas distâncias se estende a jornada do incomum. Mais raro quanto mais simples. Tanto mais sem.

Olhar com consciência é olhar pela primeira vez.

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foto: fim de tarde de domingo a partir do interior da Casa do Grito, no Parque da Independência, Ipiranga, São Paulo, por R.I.

Tuesday, July 26, 2011

Agora e na hora

Tanta informação, toda a necessidade de sentido. Traçar uma linha se parece com criar histórias, ficcionalizar vidas. Caminham lado a lado, imagens ocas, peles abandonadas.

Em um instante de folga (ganha à força) abro livros, que libertam fontes. Não demoram a cobrir ossos e vácuos em novas florações.

À literatura!

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foto: interior da Biblioteca de São Paulo, na zona norte de São Paulo, por R.I.

Saturday, July 09, 2011

A partir

Fechou as janelas devagar, sem o estrondo de outras vezes. Não havia cortinas para baixar. Olhou para cada canto do quarto, sala, cada móvel, objeto. Na quietude em que estavam pareciam lançar um convite para ficar. Tanto tempo lhe fizeram companhia, ganhando quase rosto.

Tocou as almofadas com um carinho de ausência, de dias recombinando cidades e histórias inconclusas. Em cada uma dez mil direções, sem nitidez, como sua miopia sempre envolvendo. E os escritos sem lentes, sem linha, sem luz.

Andou lentamente para olhar mais lento para cada pedaço de si extraído externado em lugar. Quase parando em cada outro inspirado adotado em pessoa. Entre eles apenas passagens para desencontros.

Respirou em plena consciência, andou para a porta, parou. Assim, através de nuvens e desertos olhou para casa pela última vez.

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foto: interior da Catedral Metropolitana de Santiago, Chile, por R.I.

Tuesday, July 05, 2011

Anti-espelho sonoro

Parece sempre estranho ouvir a própria voz gravada, qualquer que seja o meio: secretária eletrônica do telefone, computador, gravador digital. Não é, de forma alguma, um espelho sonoro. Ela te fala de algum lugar muito distante. Alguma arca reaberta em uma plataforma distorcida. Que insiste em devolver um texto já rompido, abandonado.

Não é você mesmo, mas guarda alguma familiaridade. Talvez em algumas vogais escuras, muito breves e quase imperceptíveis. Ou naqueles tiques de longa existência, que os ouvintes atentos podem reconhecer.

Mas é outra voz, mais aguda, mais grave. Outra alma confrontada na invisibilidade, nessa ponte de mão única. Ela se repete cada vez diferente a alguém que parece não mais lembrar como foi chegar a esse outro lado. Uma voz desnaturada, suspensa no tempo.

Ela perturba o viajante nas horas pares quando tenta trazer companhia sem ao menos causar um tremor.

:: foto: detalhe do Ohtake Cultural, em Pinheiros, São Paulo, por R.I.

Sunday, July 03, 2011

Ainda

O uso exagerado da consciência mental acaba envelhecendo em demasia o organismo. Mais que cansa, matura e amortece. É como a conexão de internet consumindo a bateria do telefone. Desgaste, desmonte. O tempo se encolhe para o desenlace das preocupações. Passa o dia, a hora em minutos. E o pensamento, a que destino chega depois?

Cessam as vozes nesse crepúsculo sem lanterna. Nessa pressa de dizer para onde. Estará lá, ainda que em quebra, ainda fraco, sem horizonte. Na terra sem promessa e sem história.

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foto: fim de dia sobre lago no parque Ibirapuera, em São Paulo, por R.I.

Friday, June 24, 2011

Nascer mais este dia



Começa um novo ano.


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foto: céu do parque Villa-Lobos, em São Paulo, por R.I.

Wednesday, June 15, 2011

Sob sua sombra

Este anoitecer parece longe nos planos e terras. Só as luzes talvez saibam o quanto durou. Quantas rotações carregadas de vezes a escapar, canções como companhia. Parece longe e nunca. Mas há gente ao longo do caminho. Ainda há sombra. E a lua.

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foto: lua sobre o Auditório Ibirapuera, em São Paulo, em noite de show de Sharon Jones, por R.I.

Saturday, June 11, 2011

Carta sonora


Fazer uma coletânea de canções é uma forma de construir um mundo. Ou sonhá-lo. Movida por um tema ou sentimento, ela vai se tecendo ao puxar da memória, na associação de acasos, tropeços bem, mal sucedidos. Sem saber ganha corpo, passa quase a se sustentar. Cada música faz seu clima transbordar para fora da lista, contaminando a sequência e o ouvinte. Não é mais simplesmente uma trilha sonora. Ela se mistura na frente às imagens de histórias parte vivas parte enterradas. Percorre o ar que se expira a todo fim de faixa, numa exaustão de fim de fôlego.

Sunday, June 05, 2011

Para o outro lado

Nesse acordar tudo parecia diferente. Talvez não fosse uma névoa cobrindo de estranheza o mundo que costumava viver à sua volta. Havia algo mais longe, mais destoante. Como se as coisas estivessem em um outro plano. Ali na frente, mas tão fora de alcance.

Dava um desconforto. Mais ainda: uma agonia. Por saber que os laços, antes quase rompidos, já não resistiriam mais. Estava solto no mundo. Sem um teto, sem um chão. Liberdade amarga, ausência de pares.

Queria então que fosse apenas um sonho, daqueles de que se desperta aliviado. Sentiu frio, se encolheu, buscou uma lembrança, cantou baixinho um tema antigo, do coração antigo que imaginava continuar.

Seguiu pelo dia sem saber o que estaria por vir.

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foto: telefones públicos no interior do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, em São Paulo, por R.I.

Tuesday, May 31, 2011

Contemplação

Tempo. A maior riqueza. Os espaços em branco são essenciais para que a visita do novo aconteça. Para que se pare a resposta automática, o giro da engrenagem do já sabido. Um tempo livre para se deixar ficar.

Dias sem preenchimento. Sem tarefas ou objetivos. Apenas com a vida em passagem. À vida.

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foto: paineira e voo de pássaro na entrada do núcleo Pedra Grande do Parque Estadual da Cantareira, por R.I.

Tuesday, May 24, 2011

Um café para o não esquecimento

Marcamos um café para nos revermos. Tanto tempo. Será como nas fotografias, gestos retirados da história, guardados no álbum?

São imagens mudas, mais resistentes que as falas. Mais alongadas que fixas, lançando ventosas nos dias que passam na sua ausência.

Um café pelos velhos sentimentos, sentidos restaurados, afetos tangentes. Por todos os caminhos que se intercederam sem motivo anunciado. Conversas que acabaram cedo e nunca mais continuaram.

Em algum lugar sem o mesmo passado acontece um café. Entre janelas e fotos conta os minutos que faltam para que talvez se reconheçam.

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foto: clarabóia da sala do pregão da Bolsa do Café, em Santos, por R.I.

Thursday, May 19, 2011

Como sobreviver

[ao som de ‘A piece of sky’, de M. Legrand e A. e M. Bergman, na voz de Barbra Streisand]

Como continuar a viver sem se desesperar diante de tantas armadilhas despejadas por pessoas e empresas ardilosas, governos e grupos contaminados, corporações sinistras, todos sempre prontos a tirar proveito de inocentes e incautos? Como manter a serenidade diante de tanta maldição? Como não cair e não entregar a paz, a ciência, a direção?

Muitos tropeços parecem estar a ponto de acontecer. Muita fragilidade. Ali onde cresce a sensação de estar só, mais só do que na proximidade da partida. Sem qualquer lastro nem palavra.

Ao pouco que restar de força talvez se guarde alguma lembrança. Talvez se volte a cabeça para o alto na intenção de uma súplica. Talvez se pare e se mergulhe na estreita possibilidade de um reencontro. Uma fímbria de céu. Sem depois.

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foto: teto da estação Pinheiros do metrô, em São Paulo, por R.I.

Saturday, May 14, 2011

Fora

Quando me esqueço do que guardo,
quebro grades, graves quinas
quase grito, quase ganho

Esqueço-me agora
em quadros e gumes
em quartos minguantes

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foto: orquidário Ruth Cardoso, no parque Villa-Lobos, em São Paulo, por R.I.

Thursday, May 05, 2011

As várias travessias

Pois é. Não bastasse a dificuldade de transpor o grande rio, o cansado se dá conta que o percurso terá de ser feito inúmeras vezes. Cada dia. Talvez o fôlego dure por algumas travessias, mas não parece suportar tantas repetições. E também o rio se desdobra em outras formas, novos sofrimentos.

O barco que abriga o sozinho desaparece em meio a espessas névoas. Perigosas correntes empurram-no para direções que não se sabe. Mal se perde, não se deixa.

São diversas vezes que se tem que cruzar esse rio, esses rios. Com o corpo cada vez envelhecido, a mente instável.

:: foto: rio Perequê-Açú, em Paraty, por R.I.

Tuesday, April 26, 2011

Outro mundo

Algumas vezes vem essa sensação de estranheza com tudo em volta. A impressão de que o tempo passou, os lugares passaram e qualquer coisa ficou perdida não se sabe onde. Poderia ser apenas um desajuste temporário, não fosse o incômodo, o peso de um transcorrer sem fundo.

Chega a hora em que não se encontra mais lá nada do que poderia ajudar a reconhecer a figura. O exterior desconectado de um interior cada vez mais encolhido e sem pares.

Diferente de uma viagem insólita. Está mais para uma deserção.

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foto: ruínas da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, na cidade de Iperó, estado de São Paulo, por R.I.

Monday, April 18, 2011

Em uma noite e um dia

A Virada Cultural é uma concentração no tempo e espaço da experiência urbana de uma cidade complexa como São Paulo. No polígono central é possível passar por um repertório imenso de contatos e diferenças. De descobertas a mesmices, de felicidade instantânea a sustos tenebrosos. Ali as pessoas reconhecíveis do cotidiano, mais além grupos que não se encontrariam se não fosse por essa noite e dia.

Por isso é difícil chegar a qualquer síntese que não a da diversidade. O percorrer em círculos e vertigens cada esquina.

A cidade se reconhece, apesar, mesmo assim.

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foto: encenação da ópera I Pagliacci no Páteo do Colégio, local de fundação da cidade de São Paulo, por R.I.

Sunday, April 10, 2011

Baldes

Chutou o balde. E qualquer resto de espera que nela coubesse. Esgotara o pavio sem chamas. Só saberia o efeito mais tarde, quando fosse conferir o saldo. Foi controlado na hora: nenhum rastro de raiva, alguma elegância, precisão. Mais perto do simbólico do que do choque. Nem sabe ainda como desatou o gesto. Caíra de si depois de tantos anos.

Baldes. Bastantes.

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foto: fragmento do espetáculo ‘Os reis preguiçosos’ do grupo francês Transe Express encenado no parque da Independência, Ipiranga, zona sudeste de São Paulo, por R.I.

Saturday, April 02, 2011

O sabor do sentido


Ele caminha pela cidade sem um destino conhecido. Foi assim que descobriu tantos lugares de encanto – prazer do encontro e chegada. Não apenas as ruas estreitas, mas mesmo as avenidas mais trafegadas guardam cantos inesperados ou recentemente modificados. Uma nova confeitaria, quem sabe. A torta de amêndoas, de cor e textura acolhedoras, parece chamar em silêncio.

No prato à frente os minutos parecem escandir a pausa, um repouso em parada. Cada fatia se encolhe em menos em mais se expande no sabor enfim liberto. O horizonte ensaia acabar no doce; o tempo, no gosto.

Enquanto durar seu toque a vida escorrerá em sentido. Incompreensível, devotamente apreendido.

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foto: instalação cenográfica de cafeteria na São Paulo antiga, no segundo andar do Memorial do Imigrante antes da reforma ora em curso, por R.I.

Monday, March 28, 2011

Antes que seja cedo demais

[ao som de ‘Desperado’, de D. Henley e G. L. Frey, na voz emocionante de Judy Collins]

Não existe fim. Esse é o aprendizado depois de tantos anos, tanta experiência. O que parece terminar acaba se revelando inconcluso, incompleto. Só deixa de ser visível; está em algum outro lugar com a mesma força.

O que cansa não termina. Talvez permita algum repouso na sombra de uma alegria conquistada com muitos riscos. Ali onde se estendeu o resto de poesia, o ressaibo das palavras de bem dizer.

Ali onde começa.
E não se esquece mais.

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foto: lago Guarapiranga, a partir da margem norte, no bairro do Socorro, zona sul de São Paulo, por R. I.

Tuesday, March 22, 2011

Enfim

Há o cansaço. E os ciclos repetidos de dias e frases.
Mais o sono intermitente de fins antecipados.
Esse deveria ser o sentido que buscava há tanto tempo.

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foto: instalação do grupo francês Carabosse no Jardim da Luz durante a Virada Cultural de 2009 em São Paulo, por R.I.

Tuesday, March 15, 2011

Mais pesado mais vento

Andando à tarde em ruas desconhecidas me dou conta de que o tempo passou. A lentidão pode ser proposital, mas também carrega um peso. Não físico. Ao ver o movimento todo, de veículos e gente, sem pausa nem lastro, sinto o gosto do passado refluir como magma. Ainda se pode reconhecer o roteiro, primeiros desfechos; entender as conversas, encaminhamentos. Mas a densidade mudou. O que antes parecia alimentar agora passa sem garantir sustento. Pesa, sendo cada vez mais rarefeito.

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foto: a partir do interior do terminal do Expresso Tiradentes, no Sacomã, zona sul de São Paulo, por R.I.

Sunday, March 06, 2011

Sob o tempo

Agora sim
Fluirá com o tempo
Por dutos velhos
Que não aguentam
Em débito
Cada vez mais perto

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foto: tarde de chuva sobre o viaduto do Chá, no centro de São Paulo, por R.I.

Sunday, February 20, 2011

Junto ao fora

Pode parecer incrível, mas um dos raros momentos cotidianos em que alguém pode se identificar com o todo é assistindo a um filme em uma sala de cinema. Lá ele volta a ser um com a espécie, com o universo. Consegue se desvencilhar dos nós que o mantêm ligado à sua vida particular, separada, e mergulhar no rio daquelas outras vidas, tão distantes e vizinhas. Por duas horas, pouco mais, pouco menos, ele não apenas observará como de fato estará nessas outras biografias.

Não importa seu destino. A experiência do cinema modifica o olhar dessa forma radical, ainda que momentaneamente. Mais do que qualquer conteúdo novo, a vivência da integração com o que parecia estar fora.

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foto: praça do Patriarca, no centro de São Paulo, por R.I.

Tuesday, February 15, 2011

Trilhas encobertas

Quanto ainda resta do estoque de respiros tenta-se adivinhar. Cada vez que há uma parada o montante se altera para menos ou mais. Como um alimento para o corpo esvaído, mais que o sono ou estímulos sensoriais, o vento o reanima. Distância. Espaço. E um andar que não cessa ainda.

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foto: vista da orla de Santos, por R.I.

Tuesday, February 08, 2011

O mais difícil

É como respirar aliviado por escapar mais uma vez sem saber ao certo onde vai dar essa trilha de um só. Olhar para a mesma paisagem dos outros em um passo diferente, quieto e instigante. Resistir às demandas de voltar. E continuar.

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foto: skyline de São Paulo a partir de um dos lagos do parque Ibirapuera, por R.I.

Wednesday, February 02, 2011

Regata

Poderia ser alimento, mas é apenas remédio. O que são dias e dias desconhecidos na cidade sem fim? Talvez a refeição bem feita, como se fosse a próxima, a nova. Como um encontro possível depois de frases esgotadas. Dias de chuva para deixar evaporar. Ou condensar?

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foto: detalhe do orquidário Ruth Cardoso, no parque Villa-Lobos, em São Paulo, por R.I.

Thursday, January 27, 2011

De ser

Sentir o vento no peito
Nele se ater, sem menos
Tempero e acentos, inteiro

Sentir no peito os veios
Intensos, sem medo nem tempo

Desde cedo, talvez sempre
Sem dizer
Sentir, sentir

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foto: detalhe do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, por R.I.

Friday, January 21, 2011

Livre

Em ‘Além da vida’ (‘Hereafter’), dirigido por Clint Eastwood, as três histórias sobre experiências com os mistérios da morte estão entrelaçadas com os dilemas da vida terrena. É o impulso de lidar com eles que ajuda os personagens a resolver suas pendências, atravessar as pontes ou interromper o fascínio do que estaria do outro lado. Uma palavra de incentivo a continuar, a possibilidade de se expressar, um encontro romântico. Cada uma dessas realizações religaria os fios.

Quando se olha para os dias difíceis, difíceis, algum mistério parece oferecer conforto ou sentido. Mas, ao mesmo tempo, vira alimento para seu próprio poderio.

No café charmoso em Londres, quem recusa o dom tenta caminhar como simples mortal, sem privilégios de comunicação. Não sabe o que virá. Nesse desconhecimento parece caber sua liberdade.

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foto: detalhe do parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre, por R.I.

Saturday, January 15, 2011

Nem se encontrar nem se perder

Espio Porto Alegre pela janela do táxi. A passagem pela cidade é rápida demais para deixar alguma impressão mais precisa. Mas lembro dos escritores que de certa forma a tocaram mais direta ou obliquamente. O canto fugato de Caio Fernando Abreu, as aquarelas amanhecidas de Mário Quintana. Que traços poderiam também ser os meus? Se a cidade não responde, deixarei que ela sobreviva na memória enquanto peças avulsas de um quebra-cabeças sem mapa. Cada pedaço talvez um começo de crônica, em dias quebrados, a cidade andando.

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foto: ao fundo detalhe da fachada do Mercado Público de Porto Alegre, por R.I.

Thursday, January 13, 2011

Nuvens informadas

Serão as nuvens confiáveis? Guardarão com cuidado os arquivos relíquias? Parecem tão instáveis nesta época de liquidez constante. Mas cada vez mais são transformadas em biblioteca do mundo digital. Quem olha para elas talvez não imagine sua capacidade de reserva ou precipitação. Mais que água conduzem pensamentos para lá e além.

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foto: céu do Pacaembu, em São Paulo, por R.I.

Tuesday, January 04, 2011

Fóton

Olhar fotos antigas não significa sempre voltar-se para o passado. Algumas vezes é um exercício de rearranjar as peças de uma vida e conferir novos sentidos. Como se uma outra história estivesse passando, uma outra pessoa. E essa paisagem quebra-cabeças se tornasse a cidade de tempos corrigidos. Gestos desatados.

Entre tantas fotos alguma luz ainda parece intrigar. Leva a atenção para um ponto esquecido, que não se valorizava. Que talvez possa ser religado.

Mais um caminho. Ainda algum.

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foto: instalação sobre a praça do Patriarca, no centro de São Paulo, na Virada Cultural 2010, por R.I.