Tuesday, January 27, 2009

Na altura do Monte Serrat


São mais de quatrocentos degraus. Talvez possa parecer uma penitência ou promessa a cumprir. Ao longo do caminho há nichos representando as quatorze estações da paixão. Mas não é com esse sentido que o viajante começa a subida do monte. Nos seus passos há qualquer coisa de quase sempre: o jeito de caminhar é o que tem feito dele o andarilho de todos os dias, somando motivos de descoberta e contemplação.

Se o percurso é íngreme, as vistas compensam. O corpo pode refletir algum desconforto, o caminho o sustenta.

Ao final, a capela surge como a um romeiro. Do alto do mirante, para todas as direções, respira e olha para dentro. O espaço que os separa foi assim preenchido.

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foto: vista a partir do alto do Monte Serrat, em Santos, por Ricardo Imaeda

Saturday, January 24, 2009

SP, 455



Talvez seja melhor não marcar nada. Porque pouco resiste a esse tempo de quedas. Mas pararei mais uma vez qualquer ocupação que falte. E acenarei para ninguém na dúvida do que se perde, na incerteza do finito que se agarra.

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foto: vista do bairro de Perdizes a partir de acesso à estação Sumaré do metrô, na região oeste de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Tuesday, January 20, 2009

Guardados para perder

[ao som de ‘All of me’, de Simon e Marks, na voz de Billie Holiday]


São de tantos anos diferentes os papéis que restaram nas pastas e caixas agora na hora de nova limpeza. São de um só.

Quem os lê pode se perder. Como se deixasse a memória o andarilho com uma lista de endereços exatos demais.

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foto: praça Dom José Gaspar, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, January 16, 2009

Mandalas pessoais


Os amigos sempre repararam na beleza dos seus pratos de salada: composições de muita cor, formas diferentes, combinadas em uma ligeira assimetria, mas também harmonia circular. Tão bonitos que poderiam ser tema de fotografia.

Ao montar a salada ele criava uma síntese do que lhe agradava, de um jeito que unia desenho ao acaso. Assim também com os molhos, que desajeitadamente vertia por sobre os vegetais.

Era tanto objeto de contemplação quanto sabor. Para suspender o pensamento e simplesmente sentir.

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foto: detalhe do teto do átrio da Sala São Paulo, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, January 09, 2009

Samsara


Leu os livros como quem percorre territórios desconhecidos em sua própria cidade. Acreditou como quem se entrega a uma cura. E se esqueceu como quem acorda todos os dias.

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foto: detalhe da estação Sacomã do Expresso Tiradentes (também conhecido como Fura-Fila), na região sudeste de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Thursday, January 01, 2009

O que desponta e se dissolve


‘To see a World in a Grain of Sand
And a Heaven in a Wild Flower
Hold infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour’
-- William Blake

[‘Ver o Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor Selvagem
Segurar o infinito na palma de sua mão
E a Eternidade numa hora’]
- [trad. de Mário Alves Coutinho, em ‘Tudo que vive é sagrado’, Ed. Crisálida]

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Em pouco tempo terminará este ano. Dentro do templo, muitas pessoas ao meu redor. O canto das monjas inspira a contemplar profundamente o universo. Aos poucos começo a visualizar os rostos das pessoas que conheci ao longo da vida. Eles vão surgindo espontaneamente, sem a direção da vontade ou da memória. Amigos ou familiares; conhecidos por longo prazo ou apenas alguns minutos; pessoas que me fizeram imenso bem ou inesperado mal; a quem propiciei algum conforto ou infligi algum dano. Rostos de animais com que convivi ou simplesmente vislumbrei ao longe. Árvores, águas, terra.

Olho para cada um deles na história, no presente e enquanto se dissolvem no horizonte. Para cada rosto um mesmo horizonte. Sinto que falta alguém, mas não condigo forçar as aparições. Elas fluem em uma sequência que não compreendo, como em um filme-resumo, que dizem surgir aos que estão falecendo.

Ouço ao longe o canto, que continua. Não sei quanto se passou nem me pesa a pressa, agora aquecido no peito por um abraço compassivo a essa paisagem, que finalmente reconheço e no qual me dissolvo.


Que seja inspirado e verdadeiro o ano que se inicia.

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Gostaria de recomendar intensamente o extraordinário livro de Sogyal Rinpoche, ‘O livro tibetano do viver e do morrer’ (ed. Talento e Palas Athena). A sabedoria que dele se aprende pode significar uma diferença sensível na vida a seguir.

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foto: detalhe do interior do templo Zu Lai, em Cotia, São Paulo, por Ricardo Imaeda