Tuesday, April 24, 2007

Respirar e ouvir

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Imagino que cada um deva ter um instrumento musical com que mais se afina. Aquele que toca a alma quando ouvido mesmo ao longe, ou em meio à mais profunda crise existencial. Que gostaria de aprender a tocar de forma tentativa, amadora. Mais para senti-lo perto nas notas extraídas a muito custo, tremidas.

Quantas vezes não terei ensaiado me aproximar mais do violoncelo para tocar aquela canção do passado? Ou buscado gravações que ressaltassem o som grave e melancólico de suas cordas? Em um celo cabe uma vida de procuras e um dia de encontros.

Se não é possível tocar que seja presente ouvir. ‘The essential Yo Yo Ma’ traz uma compilação da maestria desse músico que expande as fronteiras do violoncelo para muito além do clássico. Mesmo em um tema composto para outro instrumento, o ‘Gabriel’s oboe’, de Ennio Morricone, Yo Yo Ma convida a ouvir como se fosse pela primeira vez a música de um outono interior. Como se a voz do instrumento nascesse não da fricção do arco na tensão das cordas, mas da respiração do artista, de sua matéria sensível trazida à luz.

Friday, April 20, 2007

1 h 59 min

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É como se viajasse em um ônibus de dois andares. A maior parte do tempo no andar de baixo, atarefado, em constante movimento, olhando para todas as direções, enquanto ele roda para um destino desconhecido. Vez outra, sobe ao andar de cima, de onde as questões do dia-a-dia perdem a gravidade, na desaceleração que as verdades mais profundas impõem. De lá a jornada parece menos turva e por isso pode querer continuar, mas o passageiro se emaranha mais e mais no enevoado do térreo que, afinal, é o que o sustenta. Ou pode ser seduzido pela paixão do salto, um soltar mais largo que toda a superfície em que trafega quase insano.

Esse ônibus não tem paradas. Algumas vistas confortam, consonam, conformam. Permitem respiros que o fazem até mesmo viajar em outros terrenos, que o divertem, e o animam a seguir no itinerário.

Sua passagem, sente, já teria sido compensada por essas experiências. Agora seria o momento de forçar uma saída. Começa a pensar no lugar certo em que o abandonaria. E é quando as paisagens que fita se amontoam em um painel de familiaridades. Aquelas mesmas ruas e situações. Aquilo lhe dá um enjôo, um cansaço. Não sabe mais o que fazer. Mas continua.

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Monday, April 16, 2007

Agora é cedo



Se perder aquele ônibus
Um mundo novo irá se abrir
Nesse lado da cidade em que as voltas
Tardam a ceder

Monday, April 09, 2007

Nem quando estranhos

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Faz muito tempo que não o vejo e fará ainda mais depois de, se, o reencontrar algum dia. Não é a vida corrida nem os compromissos com tudo o que é instituição que o afastam. Mas essa covardia, essa acomodação à mediocridade, engolfada em doses módicas, caduciformes, manhã, tarde, noite. Fará mais tempo depois porque se arrependerá de ter cedido a uma curiosidade mórbida de conferir como o tempo teria desgastado a superfície e arruinado o interior. Assim, a ausência se alongará ao ponto do esquecimento que, zerando as coisas, permitirá que você me encontre ao acaso, como desconhecido, e passará despercebido, indiferente, rumo a... Não o reconhecerei da mesma forma, disperso entre os passos de antes e nada mais, em paralelos distantes, quem se importa?
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Friday, April 06, 2007

Pelas ruas sem calçada

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Alphaville, Barueri/Santana do Parnaíba. Aqui no exterior existe uma outra vida. Não parece. Afinal, o idioma é o mesmo, a moeda também, os usos e costumes parecem similares. Mas a paisagem destoa do que se conhece no país de origem. Não pela presença mais expressiva de plantas ou casas de padrão elevado. O que indica a distância é um sentido de homogeneidade das pessoas. Nada de desigualdades gritantes, extremos incongruentes convivendo lado a lado. A placidez em seu lugar.

Ruma-se por uma estrada nacional, que atravessa outros territórios nativos. E, entanto, lá se afigura essa ilha. Tão fora de tudo tão perto.

Neste estrangeiro não ensaio conhecer. Nem descobrir ou encontrar. Alguma coisa aqui ficou em outro plano. Em outra vida.

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Wednesday, April 04, 2007

Em liquidação

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O passado nunca foi glorioso. É apenas o distanciamento que cria um efeito de vitrine. E o caldo emocional engrossa mais o apetite em tempos de aridez brava.

Se lembrar conforta, quantos retornos compõem um dia bem aventurado?

As vitrines sugerem um recorte iluminado, drenado de afetos próprios e, por isso, receptivo a qualquer outra vontade. Transplantes externos agarrados com a força que resta.

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