Friday, June 30, 2006

Extenso e só


Do poeta e. e. cummings sempre me lembro dos versos para sempre de ‘maggie and milly and molly and may’, um prodígio de conceito e sonoridade:

‘may came home with a smooth round stone
as small as a world and as large as alone

for whatever we lose (like a you or a me)
it’s always ourselves we find in the sea’

[‘may voltou para casa com uma pedra lisa e redonda
tão pequena como um mundo e tão grande como sozinha
porque o que quer que percamos (como um você ou um eu)
é sempre nós mesmos que encontramos no mar’]

Além de toda a beleza das imagens, eles ressoam mais ou menos o mesmo que o saber budista zen: o que procuramos não está lá fora, mas dentro de nós mesmos. O que trazemos do mar é apenas aquilo que levamos para lá.

Mas sempre queremos um pouco mais do que achamos, polimos, destacamos. Um pouco mais de quem nos representa, ainda que eles não sejam por nós escolhidos. E nem cabem nos círculos entre a busca e a volta.

As sobras de toda garimpagem parecem se estender por todo o caminho a se perder entre a solitude e o mundo.

Saturday, June 24, 2006

...


Um ano a mais não vale quase nada
quando os passos ao lado silenciam
quanto mais em torno a terra adubo
outono, nascente ao entardecer


...
[a propósito de aniversários, renascimentos e outros acidentes de percurso]

Thursday, June 22, 2006

Para fora de si mesmo


Essas coisas são mesmo meio artificiais. Parece forçado insistir nessas imagens, produtos mentais. Não é sempre assim? Criamos figuras a partir de quase nada: uma ou outra informação solta, algumas preferências jogadas ao acaso, e muita imaginação para preencher o resto.

Talvez pouco sobreviva de tanta elaboração quando se cruza a porta para a rua. Qualquer rua, desde que vigília. Só vale então quando essas imagens perdem as molduras e ficam soltas para ganhar vida própria. Assim elas tendem a nos negar. Ou melhor, a contestar os exageros da vontade. Não serão mais parte de nós. Seu olhar de estranhamento sela um rito de abandono.

Desde quando nascem, frágeis, carentes, até essa emancipação vigorosa, trocam de lado tantas vezes. Alimentam depois vampirizam; caminham juntas, desandam; prometem, para finalmente aniquilar.

Para onde vão, deixam-nos quase sós. Apenas com a companhia delas mesmas, agora como mera lembrança.

Saturday, June 17, 2006

Qualquer passo


Foi um longo caminho até aqui. A mata fechada induzia a se perder, andar em círculos. E quando a trilha se estreitava, as pedras lisas convidavam para o abismo. Quais perigos não estarão sempre em torno na hora que nos pensamos fortes? Trilhas inteiras podem ser vias de queda; todo o trabalho de construção cair como folhas.

Haverá, talvez, certa beleza nessa hora. Agora que as horas correm entre fraquezas espelhadas.

Enquanto segue o curso, enquanto dura o dia, não recolhe nenhuma cinza. De tudo o que resta, seus respiros indicam alguma vida. Ainda não terceira margem, ainda não barco de travessia.

São belas e frágeis as pontes que ergueu ao longo do caminho. Tão incertas quanto os passos como em poucos abraços ao próximo em torno do que ardia.

Sunday, June 11, 2006

O que se deixa ao entrar

No aeroporto de Heathrow (como em tantos outros, imagino), há uma inscrição publicitária naquele verdadeiro free shopping center: ‘as melhores coisas da vida são livres de impostos’. Mais um dos intermináveis trocadilhos que caracterizam esse tipo de discurso. Mas que também podem levar para fora da sua intenção inicial. O que seriam as melhores coisas? Para quem quer categorizar ou normalizar tudo, as respostas devem seguir quase que automáticas ou o caminho das prateleiras fluirá desimpedido. Para quem quer vagar, meia volta para alguma cadeira e um ramalhete de reflexões.

O que escapa aos tributos e à captura do comércio? Até mesmo os pensamentos vivem cercados pelas tramas da compra e venda. Através de cursos, livros, conversas cobradas. Simples trocas são cada vez mais raras. Parecem sobreviver sempre ameaçadas pela intrusão de palavras de ordem, que trazem bugigangas de ordem. Livres de impostos, aquelas ofertas estão, e a um custo reduzido. Mas circulam pela rede social sob o signo de uma intermediação de drenagem. O preço, um selo seco.

Quando seu efeito passar, quer dizer, quando essas melhores coisas estiverem desembrulhadas e sem o feitiço da vitrine, talvez reste o que ficou de fora, como prenunciava aquela outra frase clássica, agora de Dante: ‘abandone toda esperança aquele que entrar’.

Monday, June 05, 2006

Intencionados



Em folhas soltas dentro de livros, feito marcadores, estão lá, anotações quase perdidas, páginas exatas em que se interrompeu a leitura. É estranho encontrar por acaso um pedaço assim de passado. Nenhum rastro mais. Nem a mais. Continuam, sem a falência de Dorian Gray na tela. O pensamento incompleto parece preservado, ainda que rompido com qualquer sentido.

Algumas intenções seguem o mesmo rumo. Mantêm um frescor de inocência, livre das manchas do mundo dos fatos. Respiram a beleza de gestos ensaiados. Todo ensaio. Mas contido em paredes sem janelas. Acabam conhecidas apenas pelos seus autores. Como diria Caio Fernando Abreu, nunca estréiam.

Cartões jamais remetidos, lembretes, poemas, inícios de teses. E aquele secreto desejo de ser completamente diferente com tudo o mais parado como antes. Um panorama em que se pode voar em paraíso cenográfico. Sem os textos desestabilizadores caindo em direção.

Thursday, June 01, 2006

Tremor

Às vezes sinto tremer o chão sob meus pés. Em alguns prédios pareço pressentir um choque de trator. Um metrô passa sob meus sapatos sensíveis. Trovão seco, de pavios curtos, curtos-circuitos desinibidos. Quando então não sei mais o que fazer. Alertar os inocentes? Deixar passar, esperar calmaria?

Mas se repete cada dia. Em andares diferentes, sob carpetes ou tacos descolando, granito, lajotas, piso flutuante. Será um aviso?

O trepidar é o mesmo, variando sapatos, temperaturas ou companhias. Faz agora parte do meu estilo. Fred Astaire sentiria? E quase não reconheço normalidade não havendo esse carinho.

Desço escadas. Não estão lá. Talvez não tenham me aguardado. Desconfio dessas construções antigas. Talvez voltando outro dia. Sei, não há precisão matemática, ou física. Sei lá. Esses espíritos abandonam fácil o caminho das pedras. Não agüentam o concurso do tempo. Então, assim habitam os que têm medo – na segurança dos chãos superados. No plano gasto de fantasmas mortos.

Mas existe trepidação ainda. Em todas as ruas. Quase ninguém deve se acalmar. É duro. Porosamente duro.