Saturday, May 26, 2007

Um lugar para vencer o tempo



Este é o local em que combinou a despedida. Bem a seu gosto, um dos marcos arquitetônicos da cidade. Foi por muito tempo cenário de suas descobertas, onde conheceu tanta gente de sobrevida curta. Enquanto espera curva seu olhar para os detalhes que antes não pareciam valer. Quantos anos percorreu esse mesmo trajeto com outros protagonistas em mente?

‘A vida acaba um pouco todo dia’, na canção de Dolores Duran. Feito histórias construídas à força de vontade, em pistas de mão única. Sem relevo, sem resposta.

Mas o lugar toma conta. E parece alongar esse dia.

Sunday, May 20, 2007

No ar

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Sempre quis entender o fascínio que os malabares exercem sobre tanta gente. Tem aumentado muito o número de praticantes por recreação ou como meio de vida nos cruzamentos das avenidas. Às vezes são pinos; outras vezes, bolas. Até tochas de fogo. Mas o princípio e a engrenagem são os mesmos. As peças descrevem um movimento circular. Em cada mão uma unidade e, livre no espaço, pelo menos uma outra, invariavelmente o foco de nossa observação mais aguda. O objetivo é manter tudo girando sem que o movimento cesse ou alguma peça caia ao chão.

Os gestos lembram Shiva, segurando fogo em suas mãos, no centro e nas bordas da mandala da vida.


O praticante, ao colocar em marcha o mecanismo, brinca com a metáfora, como um deus ex-machina. Está ao mesmo tempo no centro do círculo – como parte do processo – e fora – como observador. Dele nasce o impulso, que o requisita como um mero dispositivo de realimentação. Ele é a roda e nele são todas as peças. Sua atenção tem de estar em todos os pontos, ao mesmo tempo, sem descuidar de nenhum. Ele medita.
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[versão revista de texto publicado no blog khi.livejournal.com há mais de dois anos]

Sunday, May 13, 2007

Um ano depois

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Escrever tem sido não apenas uma forma de compreender, mas uma ponte para encontrar novos amigos, ainda que à distância. De recuperar um laço de significado no abandono do que resta solitário, entre mundos quebra-cabeças, dissolvendo-se em velocidade e indiferença.

Um ano se vai. E o caminho ainda parece continuar.

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Wednesday, May 09, 2007

Malflex

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No mundo dualista da ficção os personagens maus são dotados de uma flexibilidade extraordinariamente expandida. Não apenas do ponto de vista moral mas, inclusive, no que se refere ao aspecto físico, corporal. Eles parecem elásticos, com enorme desenvoltura e facilidade de movimentar todos os músculos e articulações. Alguns, como a menina possuída de ‘O Exorcista’, chegam a girar a cabeça a 180º. O que será que isso quer dizer? Estariam condenados os bons a uma rigidez tumular?

A capacidade de alongamento dos malvados pode traduzir simbolicamente a desconsideração e o desprezo às barreiras – naturais, institucionais, quaisquer. Nos seus gestos eles se mostram assim maleáveis como sujeitos informes. Não se estruturam nem cabem. Por isso mesmo parecem sempre se retorcer. E envolver (os outros). Estão a cada momento prontos para escapar.

Quem sofre com os exercícios para ganhar mobilidade talvez ache tudo isso um delirio, contraditório com a idéia da força contraposta à sutileza do maleável. Mas não sentirá uma pontada de estranho poder quando finalmente conseguir curvar o que antes parecia tão duro e retilíneo?

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Saturday, May 05, 2007

Sem saber, qualquer vez

[para ler ao som de ‘Firmamento’, de H.Lawes,W.Foster, versão de Lazão, Toni Garrido, na belíssima voz de Eliana Printes]

Alguns lugares, algumas pessoas parecem trazer consigo um rastro de novidade. São depositários de surpresas, que se revelam quando pouco se espera, em alguma guinada, outro ângulo. Parecem nos fazer olhar para as coisas como se fosse pela primeira vez. Um frescor sem resíduos de influências, pátinas de juízos de valor ou qualquer prévio saber. Neles existe uma abertura para o que se transforma. Como se as quedas não trabalhassem a dor; o desconhecido, as ameaças.

Olhar pela primeira vez devolve um sentido de inocência ao cansado andarilho. Ajuda nessa hora passada ao que perdeu a fé em qualquer destinatário. Substitui o distante pelo imediato, ali na sua frente, quase palpável, à disposição para seu presente.

[Para você que não sabe nada, e nada sabe de você]

Tuesday, May 01, 2007

Algum espanto

Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz, São Paulo. Na fila para entrar o menino pergunta para a mãe o que existe lá dentro, se tem tapete vermelho, outras coisas mais. Não sei se ele se decepcionará ou o que ele captará de todas aquelas formas de expor algo tão imaterial como um idioma. E o que ele levará da mostra sobre Clarice Lispector. Talvez seja ainda inalcançável a ele o caudaloso e ígneo universo da escritora. Mas em uma das salas mais concorridas – de relicários – poderia começar a balançar alguma resposta. Em uma caixa branca, que contém uma foto algo abstrata, sobre o vidro transparente está inscrita uma frase de ‘A maçã no escuro’:

‘E um modo indireto de entender é achar bonito’

Mais adiante, na sala de infinitas gavetas, alguém pode encontrar duas páginas iniciais de um livro que se chamaria ‘Objeto Gritante’, depois convertido para ‘Água Viva’. Nelas algumas anotações-lembretes-guias que caem como tal para qualquer um que se envolve com a escrita:

‘Escrever sem prêmio’ ... ‘Abolir a crítica que seca tudo’

Alguns visitantes anotam frases, têm um primeiro contato com a escritora, confirmam o que sempre pensavam, sentem talvez vontade de conhecer mais, se espantam. É o espanto talvez o que ela buscou iluminar.