Tuesday, January 30, 2007

Ímpar


‘O grande objetivo da viagem não é ver terras estranhas; é ver a nossa própria terra como terra estranha’ (G.K. Chesterton)

‘A viagem pode ser uma das mais compensadoras formas de introspecção’ (Lawrence Durrell)

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Se houvesse uma segunda vez cada um dos minutos não pareceria diferenciado, surpresas de descobertas. O traçado das ruas estaria absorvido como o vocabulário de todos os dias. Não haveria tanto significado solto para ser recombinado. E nesse passo descontinuado suspenderia qualquer novidade para apenas reconhecer qualquer possível par.

Haveria segunda história, seguidos silêncios. De uma outra natureza.

Andaria talvez por esses mesmos bairros de incontido encanto com um olhar de menor arrasto. A toda paisagem responderia com repouso e serenidade.

Mas sobreviveria essa incerteza residente? Sem abismos cenográficos ou respiros contados? De que outras perdas me alimentaria ou ficaria liberto?

Em uma segunda vez, quem sabe, flanaria sem margem. Para o desconhecido?

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foto: anoitecer sobre Santiago, a partir da Terraza Bella Vista, no Cerro San Cristóbal – por Ricardo Imaeda

Wednesday, January 24, 2007

As laranjeiras do La Moneda


Santiago é uma cidade cheia de árvores por todas as ruas. Nas calçadas frutas caídas, não de alguém que as perdeu ou lançou desleixadamente. São cerejas, ameixas, outros nomes que não adivinho. Amadurecidas em excesso, espatifam-se na cerâmica como flores ou folhas. Talvez atraiam mais pássaros. E tragam outras cores. Um pomar incidental na cidade para quem mais souber apreciar.

No centro, o prédio branco se anuncia com algum assombro. Tanta história parece cair aqui, com uma agudeza de feridas. O enorme pátio em frente se projeta com uma aridez destoante. E a escultura lateral lembra um dos protagonistas do passado. Ao atravessar a entrada, é como se me visse nesse outro tempo, em meio a todo o fragor. Não importa quanta reforma, o sentido do drama revive com turbulência, incontida nas paredes, janelas e portas do palácio.

A história parece precipitar no inesperado de um choro. Inacabado, inacolhido. Chorar, por tantos que viram ruir sonhos acordados, utopias desvairadas de inocência e superação. Chorar pelas dores compartilhadas na distância e na impossibilidade. Chorar sem sentido na manhã ensolarada, agora entre tantos visitantes desanuviados. Agora que descubro, no segundo átrio, tantas laranjeiras carregadas, com seus frutos providenciais.

As laranjeiras do La Moneda são um encontro feliz. Na simplicidade de sua entrega acenam para dias que se reciclam, com frutos para colheita para braços que souberem se estender.

Saturday, January 20, 2007

A escala


Voltar a Baños Morales depois da longa caminhada serve para redimensionar as coisas. Esse povoado no vale do rio Morales parece pequeno demais diante da altura das montanhas em torno. Mas é nessa medida que ele se implanta de forma silenciosa e real. Na justeza de escala do que é humano, na fragilidade e resistência do que se vê parte, inteiramente parte.

Descer de volta a esse mundo é ao mesmo tempo descer ao plano do conhecido e incorporar o aprendizado do que se descobriu de tão absoluto.

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foto: povoado de Baños Morales, no Cajón del Maipo, em meio aos pinheiros e aos Andes, Chile – por Ricardo Imaeda

Sunday, January 14, 2007

E continuar


Andar entre montanhas é andar sem passado. Uma possibilidade de tirar o peso sob os pés, desfincar raízes, caminhar na fina superfície que separa e integra a terra e o corpo. É sentir o tempo decantar em cada uma das pedras soltas. Contemplar desavisado arbustos floridos, regatos de repente. Junto à laguna serenar. Para lá parece convergir o mundo, reduzido aos elementos essenciais.

Diante da grandiosidade da paisagem a história se eclipsa. Não se movimenta mais no ritmo da urgência. Seu tempo é o presente. Apenas (e tudo) isso.

Assim o dia parece parar. Como qualquer traço de memória ou biografia. A rica vida ao redor ocupa todo o momento prolongado. Ela é a outra parte encontrada. Desconhecida, mas tão íntima. Faz cessar os passos para uma espécie de reconhecimento de campo. Deixa-se saudar em celebração silenciosa a saudade que a fará reviver.

Entre as montanhas andar.

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foto: laguna del Morado, monumento natural El Morado, Chile – por Ricardo Imaeda

Wednesday, January 10, 2007

El Morado para sempre



‘O Captain! My Captain! Our fearful trip is done,
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won’
- Walt Whitman
[‘Capitão! Meu capitão! Nossa viagem temerária chega ao fim
O navio sobreviveu a toda tempestade, o prêmio que buscávamos está ganho’]

A estrada, as pontes de madeira e a trilha íngreme e pedregosa ficaram para trás. Tudo agora parece submergir face à sua presença arrebatadora. A montanha arroxeada, constantemente atravessada pelas nuvens, domina o campo de visão em todo o percurso ao longo do imenso platô. Ela dirige os passos e os olhares; convida e acolhe os visitantes. É irresistível caminhar em sua direção.

Um silêncio de calmaria é pontuado pela voz de pássaros e do rio descendo ao lado. As rajadas de vento nos impelem para junto aos glaciares.

Quase sem alarde a mente se esvazia das aflições pendentes e é essa paisagem que ela passa a respirar. E devolver ao entorno um sentimento de pacificação. Como se finalmente se encontrassem em um abraço.

Um abraço mais largo e apertado que toda a jornada que os aproximou. E que sobreviverá em seu passo conjunto.

[para Adriano e Nilton, amigos e companheiros de jornada]

foto: cerro El Morado, monumento natural El Morado, Chile – por Ricardo Imaeda

Sunday, January 07, 2007

de volta para casa


Faltam trinta minutos para o pouso e a expectativa aumenta. Afinal, depois de planícies intermináveis e terrenos geometricamente cortados (agriculturados), começa o trecho rochoso, marrom avermelhado. Mas não é nada demais. Tanta terra assim na sua terra.

Agora restam vinte e dois, vinte e então ela aponta mais à frente. É uma epifania.

O avião se inclina e é como se de fato mergulhasse para dentro dos contrafortes imensos, de neves irregulares. Um magneto extraordinário, que captura e comove os olhares.

Não é uma cadeia montanhosa qualquer. Não é só uma questão de escala. A cordilheira parece conter algo mais. Um assombro que instabiliza os mais insensíveis ou fatigados de tantos cenários naturais.

Olho do alto – de mais alto – mas é como se estivesse no sopé, entre as pedras que ali se fixaram. Por fascínio ou gravidade.

Olhar para os Andes é voltar para casa.