Saturday, November 27, 2010

Sabores revividos

Assim, por acaso, reencontro o sabor da mexerica da infância aqui, tão longe, tão noite. Aquele gosto de início, anos inteiros por percorrer, finais de almoço, provas e lições de escola. Um pouco azedinha nos cantos, a cor intensa, gomos de recheio vigoroso no desmanche. Sabor então guardado (ou perdido) em algum dia comum, sem saber que por tanto tempo.

Talvez sejam dessa forma as retomadas: algum dia deslocado no espaço e na intenção, sem qualquer motivo ou cabimento, um fio de memória é puxado para fora de seu descanso e acorda as sensações que mantinha atadas.

Sabor de passado renascido. Mas diferente?

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foto: detalhe do centro histórico de Paraty, por R.I.

Thursday, November 18, 2010

As nuvens em cada onda

A tarde inteira passou nublada, ameaças de chuva de nova frente fria. Ela está quase deserta com tanta água em torno. Talvez apenas as aves continuem alerta, ligando terra, mar e céu. O resto parece parar. Até as nuvens, que só voltam a se mover dentro das ondas, evaporando com força em rugidos contra a areia.

Chove ao contrário na praia isolada pelas montanhas e floresta. Quem olhar em profundidade para qualquer ponto verá a chuva e o sol, concentrados e diluídos, pequenos, imensos. E verá a si mesmo, sua verdadeira face.

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foto: panorâmica da Praia do Sono, em Paraty, por R.I.

Monday, November 15, 2010

Pedagogia das pedras

Algumas cidades se infiltram na memória através do olhar; outras perduram no paladar. Mas Paraty fica para sempre a partir dos pés. O piso espartano do centro histórico deixa marcas fundas em quem por ali passou. Como se equilibrar nessa sequência irregular de curvaturas e arestas, lisos e rascantes, reentrâncias e gumes? É talvez a possibilidade mais viva de experimentar hoje como deve ter sido dura a vida na colônia. Andar deveria ser um exercício diário de atenção vigilante.

De onde podem ter vindo aquelas pedras todas? Não só dos pisos como das paredes. Quem sabe dos leitos e margens dos rios vizinhos. Pedras que estacam e se soltam, que forçam a olhar para baixo, a reduzir o passo, pensar outra vez antes de pisar.

Na instabilidade dessa base a singeleza calma da arquitetura das casas parece ganhar outro sentido. As ruas repelem com seu convite desafiado. São como um sacrifício de passagem. Mostram a dificuldade de se movimentar, o caráter travado do fluir social. Moldura áspera para um convívio fechado nos espaços privativos.

Olhar para esse chão é olhar para rios transformados, ainda presentes. Em cada pedra se encontram as histórias da natureza e da cidade, mais juntas do que se poderia imaginar, mais tensas do que suporia o viajante incauto.

Sentir essas pedras depois de todo esse tempo faz reviver os pés de tantos outros que devem ter tropeçado ou escorregado a caminho.

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foto: detalhe de rua do centro histórico de Paraty em um dia de chuva fina, por R.I.

Monday, November 08, 2010

Os sopros de vida

Contra o peso da idade, a leveza do olhar de primeira viagem. De iniciante na arte de olhar cada pedaço do universo com uma consciência desperta. Tudo começa a fazer sentido porque não é preciso mais explicar para se entender.

Algumas coisas estão sob controle, mas não interessam muito. Tantas mais estão à deriva, mas não é essa a substância da própria vida?
A vida, no final do caminho. E renascida nos respiros quando se removem as camadas ilusórias que vão se acumulando.

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foto: fragmento da serra da Mantiqueira, a partir da Pedra Preta, em Joanópolis, ao norte de São Paulo, por R.I.

Wednesday, November 03, 2010

Escrito em uma carta do passado

Não existe dor maior do que se sentir perdido em lugares tão conhecidos, como a avenida Paulista. Ou dispondo de pessoas razoavelmente próximas, ainda assim ausentes. Nenhuma canção confortaria, nenhuma lembrança. E tantos passos, quilômetros de asfalto.
Valerá tudo isso a pena?
Para quê, afinal?
Não haverá palavra que registre esse tormento ou lucidez excessiva. Nem Lúcio Cardoso talvez tenha conseguido traduzir a letargia inquieta em que nos movemos/estacamos.
Quem se perderá agora?
[ouve-se, ao longe, uma ária de Puccini]

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foto: subsolo do Arquivo Municipal de São Paulo, no bairro da Luz, centro de São Paulo, por R.I.