Saturday, August 25, 2007

Desalinho


[ao som de ‘Missing’, de Vangelis]

Venha ver o pôr do sol dezenas de anos depois. Outra vida, outro chão. Muito mais pessoas apressadas na calçada sem esbarrar. Mas ainda se pode ouvir o sino nas horas cardeais. Assim como sua voz não soterrada. Seria um pedido de socorro?

Então me curvaria para melhor entender a humildade do gesto. Aos pés da cidade encontraria um calor de atritos, de um sol asfaltado, na tarde que passa tarde ao ouvir sua voz perdida entre tantas outras deixadas na extensão da linha.

Não precisaria verter qualquer sentido agora que ela escorre de novo, na altura de uma busca ou na eloqüência de um abandono.

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foto: painel no muro lateral da Igreja do Calvário, Pinheiros, São Paulo

Monday, August 20, 2007

Agora e na hora

Mais do que um equilíbrio entre as demandas do presente e as expectativas do futuro o que parece atormentar o caminhante é a incerteza sobre suas próprias reservas de energia para enfrentar a viagem. Ele parece conter menos, desaprendeu mais, enquanto as falhas se aprofundam e cada vez mais a trilha se torna irreconhecível. Os dias se encurtam. Nem mesmo as leituras podem oferecer algum conforto agora que os dormentes por que atravessa começam a ceder. São de um outro tempo, sabe. Como o fôlego que lhe sustenta e passa.

Olha por ele.
E com ele vai.

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foto: detalhe do Ohtake Cultural, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

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Wednesday, August 15, 2007

blakeana

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Ao final da página talvez uma canção de inocência
Depois de tanta seca, quase rupturas
Um olhar de novato estréia
E move pontes e livros inteiros

Cante, ainda que baixo, rouco, inapto
Repetida vez
Que esqueça para assim começar

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Thursday, August 09, 2007

Com quantos ciclos

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Parece que foi em outra encarnação. Esse é o sentimento quando se revisita algum lugar que ficou abandonado nas mudanças de rotina. Alguma outra vida, se é que existe. O velho mercado, a igreja pequena mas gótica, a escola. Resistem ao tempo, continuam. E devem testemunhar finais e recomeços de tantas mais vidas. Voltar a esses lugares é como rever fotos ou rascunhos de textos. É deixar emergir aquela pessoa que estará sempre ali, a caminho de qualquer futuro, lançando olhares sem repouso, depois.

Não será, portanto, uma outra encarnação, mas a mesma envelhecida juventude. De uma insegurança que a faz retornar sempre, com as mesmas sensações.

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Thursday, August 02, 2007

Os vários sentidos do desconhecido

Uma das belas canções de Israel Kamakawiwo’ole, ‘Kaulana Kawaihae’ é escrita em hawaiiano. Na grafia as palavras parecem segredos. Mas quando ouvidas soam quase vizinhas. A melodia ajuda a encurtar caminhos e a interpretação conjuga outros componentes de significado. O mistério se desfaz em parte.

Destinos nunca antes percorridos também se conformam a essa gramática. Mesmo retirando o chão do visitante apresentam pistas e rastros de lugares já partilhados. Algo permanece na mudança de cenários. Uma escada, janelas, luminárias. Às vezes apenas uma sensação de chegada em atraso.

Será sempre assim aos poucos, depois? Virá oblíquo, desafinado? Tanta matéria se perde em não saber. E o que se agarra na vazante parece difícil demais de se assimilar. Mas, como na música, novos desconhecidos ajudam a tecer, na falta e na aproximação, um gosto diverso dos dias que se repetem.

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foto: vitrais do Museu de Zoologia da USP, Ipiranga, São Paulo, por Ricardo Imaeda