Saturday, October 28, 2006

http://mensagem











tudo verdade:
pensar enlouquece
assim na tela como na sorte

tudo enlouquece
embora haja frestas em todas as janelas

o amaldiçoado viajante
entorta a tela como a sorte
não enlouquece
mas deixa a verdade para longe

de todas as janelas nenhum traço
nem torto nem vivo
em um dia perfeito
assim é se lhe parece

tudo viagem

[a partir de títulos de blogs e de nicknames de autores de blogs, alguns deles traduzidos para o português]
[homenagem à blogosfera e a seus criadores; texto de encerramento de oficina de criação]

Monday, October 23, 2006

A diferença











Se não é por tanta indiferença
Que seja pela fase da lua
Todo o abandono, quanta partida
Inúteis paisagens qualquer dia

Se não é por pouca indiferença
Que o faça por mera fantasia
Um gesto de ajuda, ombro de arrimo
Para seu desfile de auto-estima

Se não é qualquer indiferença
Que seja alguma, fortuita vez
Nem que venha assim muito forçado
Para só o corpo reconhecer

Thursday, October 19, 2006

Sobre o chão que passa sobrevive

Sala de espera de hospital é um Purgatório, seja isso o que for. Você só consegue pensar nas coisas mais graves. Sentido da vida, flash backs dos momentos mais marcantes, milagres que não acontecem. Que tudo pode lhe custar mais, taxímetro rodando. Cada novo procedimento, cada velha incerteza. Quando há um jardim, as plantas parecem sobreviver. O chão é lacerado e limpo, mas respira como sob plásticos. Provisório como as súplicas que se consegue imaginar.

Mesmo os lírios amarelos se vergam frágeis no canteiro mal tratado. Pela janela o dia fracionado parece suspenso, sem cotidiano, só espera. O teto não tem estampas. Nem sossegos. Qualquer carrinho que passa é um susto. Qualquer susto serve.

O chão é lacerado e plástico.
Uma agenda com telefones. Mas quem?

Qualquer susto é mais humano.

Tuesday, October 17, 2006

sospiri












Aí eles passam. Melhor dizendo, simplesmente ignoram. Como se não fosse com eles. Seu olhar é de quem tem um horizonte dentro de si mesmos. Não se perturbam porque não se importam. Deixam os outros sem respostas. Tiram o valor de qualquer crença, qualquer valor.

Mas então você aprende. Com essas lições sem palavras. Duramente aprende a não acreditar. Anda por essas paisagens que por sorte não foram absorvidas pelos indiferentes. Olha para o chão enquanto ouve o barítono cantar a ária de Haendel:

‘Lascia ch’io pianga
Mia cruda sorte
E che sospiri la libertá!’
[Deixe-me chorar pelo meu destino cruel
E suspirar pela liberdade!]

Existe ária mais bela?
E você desaba.

Friday, October 13, 2006

embarca, embora











Sempre que estou em uma stação de trem é o acordeon que parece vir para acompanhar a espera. Não sei se é uma influência de Gato Barbieri e suas trilhas de cinema. Mas o som rascante e doce, as notas prolongadas com o fole se abrindo, a atmosfera de um passado alheio, tudo parece compor adequadamente essa hora. Uma suspensão quase forçada de tempo antes do embarque. Porque o sentido das estações de trem está no embarque.

Talvez não o ritmo quebrado e vigoroso de um tango tradicional. Ou o alegre vibrar do baião. Talvez o acordeon ecoe mais a sonoridade de uma canção parisiense ou de uma seresta do interior paulista. Traz uma tensão leve, suportável, que captura o ouvinte para sua história. Convida para um terreno estranho, chão que se move e deixa intranqüilo, mas ao mesmo tempo conforta com seus acordes compassivos.

Nas estações a solidão é mais amena. Tem o sentido de uma passagem. Escuridão com fundo. De uma cidade que mal se reconhece, do movimento dos que migram. Não buzinas nem sirenes. Conversas destoantes. E aquele som.

[O belo show de Mônica Salmaso (voz) e Toninho Ferragutti (acordeon) está em cartaz no Teatro Fecap, Liberdade, São Paulo, até o dia 22]

Wednesday, October 11, 2006

Urbana, Legião









16 de junho, 1994
Ginásio do Ibirapuera, São Paulo




Seria o primeiro show da Legião Urbana que eu veria. E era um momento tão especial que eu queria reunir todos os meus amigos. Todos? Talvez apenas os mais próximos (nem eram tantos). Tinha acabado de sair ‘O descobrimento do Brasil’ e era época de divulgação do disco. Sabia poucas das novas canções. Havia, claro, ‘Perfeição’ e seu retrato irônico da moral nacional. Mas esperava, também, todos aqueles sucessos antigos (e nem tanto) que poderia gritar ou sussurrar, com a cumplicidade de tantos desconhecidos irmãos.

Seria talvez clichê demais falar em magia, encanto. Ocorre que foi isso. Tudo muito desconfortável: as cadeiras para não ficar sentado, o palco longe, o som atravessado, engasgado, e eu, com aquela pasta de trabalho, aquelas roupas quase sociais. Mas tinha um sentido ali. Uma comunhão. Todos nós estávamos ali para ouvir e cantar e celebrar a nossa não estupidez. Fazer ali a nossa catarse coletiva. Relaxar a guarda de tantos embates diários. Chorar, como só é possível no meio de ‘Andrea Doria’.

Quem vai dizer o que sentiu?

Lembrava de meu conhecimento tardio da banda e seu universo de sentimentos. E dos cinco discos.

Em dois anos estaria eu em casa nova, finalmente só, como jamais pensei que sempre estivesse. Ouvir os discos, encolhendo-me em antecipação de frio, geadas. Ali o palco, ainda vazio. E penso: afinal.

Nenhum dos amigos presentes. Talvez fosse melhor assim. Legião é para ser ouvido na solidão ou junto a estranhos. (‘Sempre dependi da gentileza de estranhos’, não é?)

E mal pressentia ser esse o derradeiro show. A morte, dois anos depois. Como o primeiro apartamento. A primeira vez, minha última chance.

Quem vai dizer o que sentiu?

Um mergulho no nosso próprio poço, menos líquido que de inseguranças. De um plasma sem luz, escavado nas falhas da alma. Que nunca é fundo o bastante.

Olho para todos os lados. Movimentos de braços, lenços, cabeças. A voz de Renato esbraveja, atordoa por entre as ferragens. E vai se impondo, pairando sobre o estádio qual profeta, incenso ou dor.

A imensa dor que sentes.

O volume alto ecoa nos ouvidos. Persiste mesmo fora, mesmo depois. Mesmo agora. Procuro andar um pouco, quase meia noite. Amanhã tem trabalho de novo. E tem show também, mas não vou poder ver. É melhor tomar um táxi, demora o ônibus. Mereço algum conforto agora. Parece incrível, mas consegui ouvir a todos e a mim mesmo, com toda a massa sonora. Mereço folga de algum esquecimento.

Dizia um personagem de filme que repetia para não esquecer. Aqui estou, andando sem destino, pelas ruas de minha cidade, apartamentos acesos, vivendo em separado, pensando ouvir alguém dizer meu nome.
Pareço repetir sempre a mesma história.
Parece verdade.

Quando o que for finalmente se dissolver.

[in memoriam dos dez anos do passamento de Renato Russo e da Legião Urbana]

Sunday, October 08, 2006

Não há outro

Não é questão de ser bonzinho ou malvado. O problema é esse partidarismo da razão. Uma forma de pensar que começa dividindo a realidade em lados, territórios, universos. E encontra um meio favorável para prosperar nas mentes cindidas e muito voltadas apenas para si mesmas. É um caldo para pontos de vista unilaterais que se acham abertas, até mesmo democráticas. Que querem entender o mundo e o transformar, nos moldes em que o entendem. E querem convencer os que estão do outro lado (como se outro fosse). Não percebem sua opacidade, sua irrefreável ilusão.

Não há respiros nesse partidarismo da razão. Ainda que tudo pareça claro e iluminado, as saídas estão impedidas. Mas nem se dá conta disso. Porque é assim que se costuma pensar. É assim que se educa e se amolda à vida em sociedade. Quando há fissuras nesse modelo há chances para construir pontes que diminuam distâncias.

Mas como são as consciências que irão atravessar as pontes? Terão se modificado a ponto de chegarem diferentes ao outro lado e perceberem que não é exatamente outro?

Tuesday, October 03, 2006

Do outro lado do rio


Mesmo que seja por apenas alguns minutos, voltar à cidade, à casa da infância é remar por um canal turvo, sem lanternas ou coletes salva-vidas. Assim é todas as vezes que volto para votar. A cidade está lá, mais ou menos perto, ao alcance de um ônibus. E também mais longe do que os anos que se passaram. Nem toda a pintura ou reforma podem disfarçar sua fisionomia, enterrar memórias. Ela é um longa-metragem que nunca termina, guardado em gaveta semi-aberta.

‘Sobre todo, creo que
No todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima,
Y yo, soy um vaso vacio...’
(Jorge Drexler)

Por onde remar se as torrentes parecem drenos? Para que outra cidade fogem esses fantasmas do passado?

E assim volto as costas uma vez mais enquanto anoitece. Enquanto cresce aquela mesma sede que me secou os remos para seguir.

[por favor, ouça ‘Al otro lado del rio’, de Jorge Drexler, quando ler]