Sunday, May 28, 2006

Para viver em duas horas


O que cabe dentro de duas horas?

Desde que foi implantado o bilhete único no transporte coletivo da cidade de São Paulo, esse é o intervalo de tempo em que se pode deslocar por até quatro viagens ao preço de uma tarifa. Tempo de um longa-metragem, aula de inglês, de lavar e secar roupas nas lavanderias, tomar vários cafés e pensar na vida.

Quem souber planejar bem o roteiro tem chance de pagar as contas no banco, cuidar de outras necessidades burocráticas, fazer compras no supermercado. Pode até se dar ao luxo de caminhar lentamente pelas ruas para diferir passos e ritmos.

O prazo do bilhete serve para organizar de alguma forma a vida no espaço fora de casa, ainda que apenas para maximizar o rendimento. A corrida contra o tempo ganha um pretexto real, contabilizável. Novamente é o primado das demandas geradas na exterioridade. Mas, enfim, também permite pesar durações e validades de rotinas e ações esporádicas. Uma espécie de sino, que desperta para o valor das coisas, que faz pensar duas vezes, mesmo que instigado inicialmente pelo filtro do custo monetário.

Tanta coisa dura menos que duas horas. Tanta coisa se arrasta por até duas horas. Dá para chorar e se recompor, enquanto se espera o ônibus certo, como uma senha perdida, um itinerário esquecido. Mas que pode levar de volta. Voltar.

Saturday, May 20, 2006

Há uma esquina em cada crepúsculo


Há uma esquina em cada crepúsculo. E cada volta, uma nova chance de terminar mais vezes. Ali onde não cabem mais horizontes, em quem a busca, incerta, enfraquece. Do lado de fora, do lado do que se expele. Expira.

Não há sinais nem cartografias. Mesmo com os gastos perdidos, parece não haver restos com o que se contentar ou conformar. Qualquer vestígio de sina desaparece com as luzes que se apagam.

Ainda não há pressa. Porque não há vozes. Talvez tenham se enganchado nas outras esquinas. Se aqui viessem poderiam cantar o tango que Manuel Bandeira anunciou.

Respira, que a espera continua.

Tuesday, May 16, 2006

A cidade livre

Assim como a memória é fundamental para administrar o cotidiano, a capacidade de esquecer e se esquivar joga papel decisivo na manutenção da vida social. Pretender que não é da sua conta ou esfera de atuação é uma forma de lavar as mãos, fingir que tudo seria mais fácil sem esses transtornos e seguir. Afinal, a alienação é um escudo conveniente para quem a assume como recurso de negação de autoria ou cumplicidade. Mesmo como vítimas indiretas, muito distantes, apenas por tabela. Mas será admissível continuar inerte diante do avanço da barbárie?

Porque agora se trata de defender, ainda que frágil e mínima, uma possibilidade de civilização. A cidade como espaço de liberdade, como foi no seu início. Um lugar de trânsito e encontro, de expressão e troca. A cidade como um direito.

É essa cidade que se reconhece legítima. E que demanda virtude e consciência na ação.

Saturday, May 13, 2006

Depois de minutos


De onde vem não se sabe, não se inventa. Tem quase a espessura dos feixes de luz dos fins de tarde de outono. Agora que não há mais frutos e expiram todos os dias mais cedo. E fora, como sempre esteve, as mudanças no tempo são mais sensíveis. A terra parece mais doce do que pôde encontrar. Que a ela tornas, segundo ciências e religiões. Talvez por isso, ao som das maritacas e bem-te-vis, faz esvaziar reflexões.

E assim ele ficou, quieto, alerta, sem fixar qualquer pensamento. Deixou o vento passar esfriando, folhas caírem tangentes aos ombros. Esqueceu qualquer preocupação de inutilidade de minutos ou horas passadas sem a pressa de pontos finais. Não causou espanto ou curiosidade. Seus passos seguiram por entre as árvores. Sentiu vontade de abraçá-las, quando ainda rumava pela tarde.

Olhou para trás para confirmar ou abandonar.
Assim foi.