Wednesday, February 28, 2007

De volta a El Morado



Ouço ‘Wayfarer’ [‘Andarilho’], de J. Johnson e B. Dunning, mais uma música de inspiração celta, ao rever fotos de El Morado. Não por qualquer associação extra-natural entre cenários e civilizações, mas por simples afinidade de climas. O sopro nos instrumentos traz de volta o toque dos ventos na caminhada entre as montanhas. E a melodia mimetiza o lento avançar dos passos.

Se há solitude na altura a sonoridade parece aumentar o sentido de distância. E na semelhança com um exílio o caminhante pode encontrar um repouso, qualquer visão de outro destino.

Estarei lá repetidas vezes cada nova queda. Em trilhas que reconhecerei mesmo nos terrenos mais insidiosos. Matéria entre os sonos da lembrança e do porvir.

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El Morado existe. A 93 quilômetros a sudeste de Santiago, Chile, vive dentro de um parque nacional, parte da cordilheira dos Andes.
‘Wayfarer’ está no cd ‘Celtic Twilight 2’, da Hearts of Space


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Saturday, February 24, 2007

.... sem direção ....

Por ali talvez. Se houvesse algum sinal mais claro. Uma rua definida, ponte ou praça localizada. Mas é só ruína. Parece que todos já passaram e abandonaram. Não resta quase nada e assim deveria partir. E assim deveria seguir.

Nas ruas novas árvores plantadas. Troncos e galhos secos. Como poderão frutificar? Parecem a árvore do cenário de ‘Esperando Godot’ (de Samuel Beckett) no primeiro ato. Um esqueleto incorpóreo, fantasmaria parada, desolação. Não devem ser elas.

Para qualquer direção os destroços. Onde estará fora?

Desaparecer sem saída?

Wednesday, February 21, 2007

Pouco

Como se fosse dono
do fogo e agouro
foi o autor dos nomes,
dos contos, encontros
Desandou
Foi errôneo, foi longe

Restou pouco:
um gosto de sono,
um outono duradouro

Por onde ficou
restou sombra
que não coube na roupa
Fosse insosso ou doce,
esgoto ou fonte

Deixou dois
Levou o dobro

Thursday, February 15, 2007

Cenas urbanas recicláveis e silêncios não

Não sei se confirma Tennessee Williams, mas sem a ironia: muitas vezes são estranhos que procuram e oferecem um gesto de bondade nas salas de bate-papo. Gente de pequenas cidades do interior, sufocadas pela falta de semelhantes, alternativas, chances. Quase sempre. É uma solidariedade sem rosto. Uma cumplicidade sem nenhuma garantia de segundo encontro.

Noite alta, insone. Talvez você já tenha se sentido assim, meio suspenso no tempo e espaço, teclando. Você pode ser rápido, conciso. Mas e as respostas? Uma encarnação. Duas. Luzes fortes, palavras minguantes. Quem procura companhia?

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Dentro desse trem, um cosmos inteiro. Procuro me equilibrar entre pregadores de mão cheia (de folhetos) e vendedores de toda sorte de quinquilharias. Um shopping móvel, diante de tanta pasmaceira. Muitos barulhos incidentais anseiam preencher e enganar a volta para casa. Não deve ser bem um retorno, mas algo como a imagem que oferece a janela: uma paisagem misturada com o reflexo interior do vagão.

Assim vão, entre dormentes e estações. Entre conversas rotuladas e um silêncio que se alonga quando se atravessa a porta.

Friday, February 09, 2007

Visibilidade sem parada

São Paulo, vale do Anhangabaú. Bem abaixo do Viaduto do Chá, dentro de um cubo preto especialmente construído para tanto, está instalada uma obra de Anish Kapoor: Ascension. No interior, o caminho até ela é estreito e sinuoso, criando expectativa. É como andar por um labirinto, ainda que sem tanta apreensão de se perder ou se achar. Mas quando se chega à escultura qualquer ‘oh’ é abafado. Quase não se percebe o que está adiante. São alguns estreitos rolos de fumaça cinza clara, quase brancas, que sobem em direção ao teto, sugadas por um exaustor, dentro de um cilindro mais ou menos invisivelmente demarcado.

Talvez alguém sinta alguma comoção ali, na reprodução controlada de uma cena tão corriqueira. Qualquer vapor de água de chaleira, qualquer chaminé, qualquer ralo gasoso... Outros poderão entrever algo de metafísico na quase imaterialidade quase diluição das amarras existenciais. Alguma conexão espiritual, sugerida pelo título? Na cidade ela pode servir como âncora de questionamento, parada para refletir.

A quase invisibilidade de pessoas, construções, sinais exige mais tempo para quem passa. Exige uma disposição diferente do olhar. Uma segunda chance. Quantos terão?

Sunday, February 04, 2007

O tao das árvores












[ao som de ‘Tonight my sleep will be restless’, de Alasdair Fraser e Paul Machlis, música de inspiração celta, ainda que a Irlanda não seja aqui]

Há muito tempo plantei um pinheiro. Desde os primeiros ramos, ainda no vaso de barro, acompanhei lentamente seu crescimento. Até que, transplantado para o solo do quintal de casa, ele ganhou o espaço para se expandir em sua justa medida. Viveu placidamente por diversos anos enquanto não acendeu temores humanos que, por fim, o vitimaram.

Ele continua a viver em cada pinheiro que encontro nas cidades que encontro. Em cada um deles posso reconhecer algum fragmento daquela mesma árvore. Inteira, como ela deve durar. Com diferenças acentuadas, como ela se transforma em toda nova vizinhança. Resta em uma quietude azul.

De certa forma, é sempre o mesmo pinheiro. Apenas mais forte com o tempo que incorporou nas sucessivas rematerializações. Sempiterno. Agora e aqui.