Thursday, December 25, 2008

Um dia


Por muito tempo acreditou que algo mágico acontecesse naquelas datas. Algum presente esperado ou não, com poderes para transformar o curso dos dias iguais, trazer um sentido novo ou força para seguir.

Por muito tempo acreditou que algo extraordinário viria se conseguisse entrar em meditação. Algum saber, talvez apenas sentimento, diferente, misterioso, que abriria a mente e traria novos sentidos para a vida.

Passaram-se estações de aridez e ceticismo, em que qualquer possibilidade de mudança era recebida com indiferença. Mas foi assim, na distensão do desejo e da espera, que ele percebeu os dias amanhecendo com uma irreconhecível serenidade.

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foto: Conjunto Nacional e edifício do Banco do Brasil na avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, December 19, 2008

Quase líquido

[ao som de ‘Paciência’, de Lenine e Dudu Falcão: ‘a vida não pára... a vida é tão rara’]


Notícias ruins continuam a bater à porta na periodicidade de jornais. Muitas vezes como ameaças, antecipações de infortúnios. Ainda se aproximam mais do distraído, fazendo o circuito de profissionais. Elas só se comprazem com o tormento dos outros. Na desgraça dos aflitos parecem querer encontrar um pouco de paz.

Nuvens sem diluição.

Mas se desequilibram, também estendem luz para aquele que contempla, na profundidade do que contempla.


Estes são dias para verdadeiramente ver e acordar.
Feliz Natal.

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foto: detalhe da via expressa marginal Pinheiros, região sudoeste de São Paulo, em noite de quase garoa, por Ricardo Imaeda

Saturday, December 13, 2008

Com a Terra

[ao som do prelúdio da Bacchiana Brasileira 4, de H. Villa-Lobos, na versão de Egberto Gismonti]


Depois de uma viagem de trem ao lado do rio Pinheiros, em direção ao rio Jurubatuba, com a cidade sempre em volta, e de uma caminhada de pouco mais de um quilômetro, a tarde ganha outros tons e uma nova atmosfera. Não mais o ranger frenético das rodas e negócios, mas o escoar simultâneo da pessoa e do tempo.

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foto: lago Guarapiranga, a partir da margem norte, no bairro do Socorro, zona sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda


Saturday, December 06, 2008

Consumo como sono


Não é bem cair na tentação do consumo desmotivado. Andar em meio a tanta gente que compra às vezes dá certo conforto. Um a um poderia ser alguém conhecido, com quem se conversou em rotinas de trabalho ou fila. Talvez um rosto da infância.

Nessa época do ano eles parecem se animar a sair de casa, adensar as ruas. Nem que seja por um rito automático de trocas. E mesmo nos seus movimentos de busca alguma coisa de inesperado pode sobrevir.

Há um conforto além da oferta variada de produtos. Ou da simples presença de outros, ainda que indiferentes. Eles compõem um cenário flutuante, no limite entre a inconsciência e a ilusão. São como o sono a quem está cansado.

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foto: interior do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, December 01, 2008

Desembarques a bordo


[Ao som de ‘Tajabone’, de e com Ismael Lo]


Agora estava em movimento. Não fazia diferença se a paisagem não mudasse. Sua percepção o levava para longe. Tinha arrumado os papéis e objetos do passado em caixas, estocadas em fundos de armário. Dos registros apenas o que havia transbordado em gesto, ação.

Sem história, sem desejo era como se deslizasse pelas ruas de uma cidade ainda desconhecida.

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foto: estação de metrô Alto do Ipiranga, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, November 23, 2008

Enfim

Foi mais um cansaço. Pode ter passado, assim como outros, das vezes em que lhe chamei, acenando com ingressos para algum espetáculo.

Não sei com quantos cansaços se faz uma espera. Eles se gastam, como as horas, os pisos, por onde andarei mais e mais, contando janelas, contando as vezes. E lhe abandonarei.

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foto: detalhe do edifício Sampaio Moreira, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Tuesday, November 18, 2008

Ela abraça a finitude e a luz

[ao som de ‘Here comes the sun’, de George Harrison, na voz emocionante de Nina Simone]


Em ‘O caminho para Meca’, vemos Helen cada vez mais fragilizada, na iminência de não mais poder cuidar de si mesma. Sentindo-se pressionada a mudar para um asilo, ela se contrai, curvada à mesa, quase desabando sobre uma vela. Na sua deriva imóvel ao destino ela nos arrepia as cordas da compaixão.

Não demora muito e do que parecia desoladamente perdido ela se levanta para falar sobre a sua arte que, como as velas que acendia, a ajudavam a confrontar o medo, e o medo da escuridão. Agora sua voz vem firme, as velas em punho, no percurso que ainda lhe resta.

Suas esculturas iluminam um caminho em meio a toda a incompreensão e intolerância que a sua diferença provoca. As velas que ela abraça tremem ainda, a sala anoitecida, enquanto olhamos em defesa do que parece minguar, parece apagar, mas resiste.

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[Cleyde Yáconis brilha intensamente na peça ‘O caminho para Meca’, um texto forte de Athol Fugard, em cartaz no teatro Jaraguá, em São Paulo, de sexta a domingo. Durante o mês de novembro está com preço promocional na campanha da Apetesp]

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foto: detalhe de painel de Di Cavalcanti na fachada do prédio do hotel e do teatro Jaraguá, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, November 16, 2008

Sem roteiro

A realidade é mais surpreendente e criativa do que poderia imaginar qualquer ficção. Assim, é legítimo esperar, como é razoável sonhar. E dessa matéria talvez retirem alimento aqueles que caminham.

Quase ao final uma história ganha reviravoltas e o cenário muda. Decisões de alguns poucos repercutem, ampliadas, em um efeito de onda, para chegar onde não deveriam.

Os motivos muitas vezes não importam, porque os giros do acaso embaralham os planos.

Serão eles os reconhecidos tanto tempo depois?

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foto: vista sul, a partir do mirante da Vila Madalena, região oeste de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, November 05, 2008

Ao cidadão do mundo

Ao som de ‘Amazing Grace’, na extraordinária voz de Jessye Norman


uma escolha tão esperada tem chance de se consagrar
e um sentimento de partilha se estende por latitudes e longitudes
porque se reencontra um dia o que não se deixou levar

porque sim, é possível

Tuesday, October 28, 2008

Agnus Dei

Talvez ela resista por mais tempo. Mais do que um dia esperou. E o apego aos riscos e fendas não faça falta depois de conseguido o desenlace. Talvez assim a confiança volte. E ela possa, então, renascer.

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foto: detalhe da Casa Modernista, projeto de Gregori Warchavchik, na Vila Mariana, sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Thursday, October 23, 2008

Ontem, quando a vida é possível

No palco largo, imenso, o centro iluminado contorna a pequena banda em torno de Stacey Kent. Quanto mais sua voz se contém aos registros mínimos mais rico de sutilezas ganha vida a canção. Vaga lenta como se falasse baixinho, pesando o sentido de cada palavra em ‘What a wonderful world’ (de B. Thiele, G. Douglas, Gd. Weiss). Na sua interpretação as pequenas coisas que inspiram o sentido do maravilhoso parecem recuperar a densidade perdida nas asperezas do cotidiano. E voltam ao ar na respiração pesada de quem acredita ao ouvir.

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[Com um agradecimento especial a René V. Almeida e a Reinaldo Alves pelo generoso presente de ouvir Stacey Kent ao vivo, ontem, no Auditório Ibirapuera]

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foto: detalhe do Auditório Ibirapuera, no parque Ibirapuera, região sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Saturday, October 18, 2008

Para então rasgar?


Não sei dizer para onde foram os conhecidos nem o que teria ficado de sobra, relíquia ou prejuízo.

Talvez só alguns papéis perdidos, escritos em letra sem força, duram nos fundos de pastas. Ali restam como heranças quase invisíveis.

Agendas de telefone sobrevivem sem contrapartidas. Não trarão mais nada nesse longo prazo a que foram condenadas.

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foto: estação da Luz, com igreja de São Cristóvão ao fundo e o parque da Luz à esquerda, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Saturday, October 11, 2008

Incompatíveis com a vida

E é como se atravessasse as ruas sem olhar para os lados nesse passo de queda. Agora que cair parece ser a endorfina do fim. Enquanto remoem os vassalos do colapso na borda de outros abismos.

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foto: vista aérea da avenida Sumaré, na região oeste de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, October 05, 2008

Os grãos

[ao som de ‘Panis angelicus’, de C. Franck, na voz de Selma Reis]


Quem come o pão do mosteiro quer um pouco de santidade para si. Aquela que vem não da massa ou dos monges mas da própria aura do ambiente em que foi criado. Talvez seja mais uma das ilusões que suportam o viajante. Ele quer um pedaço da história, um pouco de transcendência. Que dure o tempo do consumo até voltar a sentir o peso das coisas de sempre.

Esse talvez seja o pão dos sentidos não transformados. Da materialidade buscada para fora das metáforas. Não o corpo da doutrina ou a substância da fé, mas o sabor de um encontro físico. Ali, em meio à sabedoria invisível, estende-se a mão para algo cotidiano e perecível.

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foto: detalhe do Mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, October 01, 2008

Do rápido se faz o arrasto

Essa sensação de velocidade dos dias termina com as coisas que não são automáticas. Com qualquer decantação. Se demora deixa de nascer.

Mas as incertezas de outros tempos parecem ardis de subsistência. Pelo temor de que faltem recursos e sentido ainda há chance para voltar e contemplar. Na cidade que passa as faltas permitem fôlego para resistir.

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foto: edifícios do Tribunal de Justiça de São Paulo, projetados por Ruy Ohtake, no bairro da Liberdade, em São Paulo, por Ricardo

Thursday, September 25, 2008

Marcadores sem fim

Se livros custassem menos. E as editoras pequenas pudessem continuar. Se locadoras de livros se multiplicassem pela cidade. E as bibliotecas tivessem todos os livros que buscamos. Se houvesse mais trocas entre leitores...

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foto: Centro Cultural São Paulo, onde acontece a Primavera dos Livros, das pequenas editoras, até domingo, por Ricardo Imaeda

Saturday, September 20, 2008

O que deixa o filme para prosseguir


Somos espectadores de alguns meses na vida das cinco pessoas da família de Cleusa no filme ‘Linha de Passe’ (W. Salles Jr. e D. Thomas). Não faltam momentos de dúvida a todas elas. Os caminhos parecem se estreitar na medida em que o dinheiro se interpõe como vale de acesso ou passagem para novas etapas. As dificuldades se cruzam com as tentações do desvio ético.

No horizonte o perfil da enorme cidade só aprofunda a sensação de fio de corte em que o equilíbrio se faz mais e mais frágil. Lá está a realidade do amanhecer, a pia sempre entupida, o cimento sem acabar. A casa para a qual se parte, cada volta.

As dúvidas como carga. As dúvidas, que o silêncio reparte mas que também não permite parar.

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foto: representação gráfica dos diversos grupamentos de seres vivos, in Museu de Zoologia da USP, Ipiranga, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, September 17, 2008

Atravessar

Quando finalmente o telefone toca sei que não estou morto. Ainda não. Ainda existe alguém tentando chegar a outra terra. É como um sino que traz de volta à vida quem parecia já externo.

Mas é tão raro tocar. Cada vez mais.

Talvez porque se pressinta o risco da passagem, o temor de que a ausência passe a ser transitiva.

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foto: viaduto Santa Ifigênia, centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, September 10, 2008

O destino dos sinais


[ao som de ‘The boy with the thorn in his side’, de e com The Smiths]


Haverá remédio algum lugar. Com os pés frios, cabeça aquecida, só os tremores conhecem chegada.
Agora a dor é um prenúncio do fim.


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foto: detalhe da praça Marechal Deodoro, com o início do elevado Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, September 03, 2008

O que restou

Aquelas pessoas não desejam nada além do seu dia-a-dia, máquinas conhecidas, percursos de sempre. Fazem do sustento a possibilidade e o limite. Não lhes acena a mudança. A viagem seria um transtorno. Falta arte, mas não a comida.

Foi a vida, podem dizer. A necessidade ganhou corpo no costume. Ocupou todas as janelas. E não deixa lugar para a concorrência.

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foto: a partir do interior da igreja de Santa Cecília, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, August 31, 2008

Dez anos este dia


Não é o começo de qualquer coisa. Nem uma retomada. Apenas o movimento de substâncias no acaso.
E na chegada.

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Liberdade é afagar a incerteza quando não dá mais

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[ao som de ‘Quando o sol bater na janela do teu quarto’, de D. Villalobos, M. Bonfá, R. Russo, com Legião Urbana]

Tuesday, August 26, 2008

...1...


Porque ele não compete não perde.
Assim, sem oponentes nem láureas, segue o rumo sem par.
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[ao som de ‘Solitude’, de D. Ellington e E. De Lange, na voz de Billie Holiday]

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foto: detalhe da praça Charles Muller, no bairro do Pacaembu, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Tuesday, August 19, 2008

Em algum canto da cidade


Ela canta no karaokê como se fosse no disco. Mal sabem os passantes, que devem confundir. Talvez ela mesma esteja mais na música do que na lanchonete espúria, em meio aos poucos que a aplaudem. É assim contente, como ontem, enquanto o ônibus não vem.


[ao som de ‘Tú nella mia vitta’, que circulou o mundo na voz da dupla Wess & Dori Ghessi nos anos 70 e sobrevive no repertório de karaokês da cidade]

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foto: skyline do centro novo de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Tuesday, August 12, 2008

Um tanto


É difícil chegar, passos gastos
À cidade de ontem, sapatos fechados
Na deriva sem espaço

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foto: detalhe do páteo do colégio, a partir do jardim do café do Páteo, centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, August 01, 2008

Trens, carros, vagões

[ao som de ‘Flor de ir embora’, de Fátima Guedes]


Parece ser sempre o último trem este em que embarco sem saber do que espera. Ainda assim consigo, mal ou bem, me equilibrar no chacoalho do que passa, porque ainda passa.

É sempre a sensação de última passagem. De não poder perder senão não haverá mais. De não poder largar, não deixar partir. Como os lugares além da janela na ausência de quem contempla.

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foto: a partir do interior de carro do trem Maria Fumaça do Memorial do Imigrante, na Mooca, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, July 27, 2008

Uma nova troca

[ao som de ‘Landslide’, de Steve Nicks, na voz de Stacey Kent]

Cada nova compra desconta um pedacinho das perdas. Era isso que talvez pensasse, mas não adiantava. E por não adiantar perdia mais em cada novo gasto: a compensação, o dinheiro e a ilusão de uma troca justa. Não há mais justiça nessas ações. Nem razão adicional a não ser o próprio feitiço da mercadoria. Foi assim que passou a atentar mais para a paisagem.

::foto: detalhe do largo da Concórdia, no Brás, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, July 21, 2008

Se assim ouvir

[ao som de ‘Orbis de ignis’, de Lisa Gerrard e Brendan Perry, com o Dead Can Dance]


Não tema. Os aviões já estão com os assentos lotados e não há mais vagas em nenhuma repartição. Se não quis planejamento não sofrerá efeitos colaterais.

Não sofra. Nada há por baixo da terra: nem morte nem ressurreição. Apenas o magma, quase líquido como a irrealidade por que se move.

Assim, medo e sofrimento não se justificam no horizonte, quando a trilha sonora se fará ouvir com maior intensidade.

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foto: parque Villa-Lobos, região oeste de São Paulo, em tarde-noite de groove e garoa, por Ricardo Imaeda

Tuesday, July 15, 2008

Empuxo

‘Eu sou mais forte do que eu’
-- Clarice Lispector


Todo o esforço acumulado nesses anos parece ganhar autonomia no instante em que deixa de caber nos ombros. Não mais como um amontoado de concreto exercendo pressão nas articulações, mas como um fantasma incorpóreo, apartado ao redor.

Deixa o corpo andar quando a prudência diria para se recolher. Mas sem muita graça. Sem um endereço. Agora que os outros não parecem mais notar nem a sombra, é ele que parece me empurrar para fora do viaduto.

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foto: avenida dr. Arnaldo a partir do interior do Centro de Cultura Judaica, em Cerqueira César, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Thursday, July 10, 2008

O percurso do não


Enquanto durasse a estranheza voltaria vezes e vezes para esta espécie de mirante onde as sirenes não seriam ouvidas. Quando as atribulações parecem pouca coisa comparadas com o transcorrer do dia. E as questões de sempre ocupam enfim a cena e o fundo.

O visitante espera as luzes acenderem para velar melhor os que se movem, os que se debatem lá embaixo. Mal sente o artifício, os ventos o trazem de volta ao passado, que realmente o domina. Cabe em cada ponto ao seu alcance em cada giro de cabeça a cada negativa em que se reconhece. Um sem fim de recusas.

Do alto é possível sentir mais perto as histórias não percorridas.

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foto: vista oeste a partir do café do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, July 07, 2008

Um dia a menos


Porque não seria mais a repetição de qualquer coisa na terra. A começar do teatro de esperanças e maldades na voz de tantos rostos diferentes. Nessas ruas de declínios, retratos, por que não passam mais personagens.

E nas fachadas contra tempo voltam as ofertas de circularidade feliz.

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[ao som de ‘Lascia ch’io pianga mia cruda sorte’, de Haendel, na voz de Cecília Bartoli]

Thursday, July 03, 2008

A mais exata compreensão



- Mais luz!
- Se ao menos houvesse fundo...


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foto: torres de iluminação do estádio municipal do Pacaembu, no bairro de mesmo nome em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, June 30, 2008

No canto perdido


Nessas horas findas de buscas e esperas, cansaço dos roteiros repetidos, frases sorrisas, tantas vezes falseadas, em que novamente escorregas, embora esquivo, embora escanteies, cava rasas valas ao que te velas indiferente, sem sobrenome, sem sobrevida.

Ouve o pássaro cantar, ouve os pássaros cantarem.

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foto: interior da igreja de São Francisco de Assis, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, June 25, 2008

em fios que não se entendem, entanto seguem

[ao som de ‘Os presentes’, de K. Albuquerque, na belíssima voz de Eliana Printes]


A maior dificuldade era colocar os cadarços no tênis. Fazer coincidir as extremidades em extensão quando conseguia passá-los pelos orifícios estreitos. Quando entendia a lógica das tramas por que vinham e se sobrepunham para se acharem depois.

Andar deveria ser a parte mais fácil. Como as voltas de todos os dias. E os dias sem teias.

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foto: detalhe do parque da Aclimação, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, June 18, 2008

E o navio vem

[ao som de ‘Silk road’, de Kitaro]


Dois meses no mar o afastam.

Nenhum brinquedo talvez o acompanhasse dentro do navio. Talvez apenas ele mesmo, reduzido a peça de contemplação nos dias e dias através de três oceanos. E cada vez que o ponto de partida se distanciava era o que vinha a ganhar espaço. A família inteira em movimento, feito parte no desconhecido.

De norte a sul, primavera em outono, as palavras devem ter escasseado. Racionado, como o alimento da busca, na espera do que nem se saberia. Mas outro seria o mundo que afinal estaria crescendo como ele, nas promessas que tanto teria ouvido. São Paulo. Café. Terra, como essa por que transita tão lenta e fracionadamente.

Terá avistado o porto ao anoitecer, na vizinhança do sono e do susto. Talvez os primeiros passos tenham estranhado o menino, seguro em um caminho que o reconheceria de outra forma, adulto, quando o descanso finalmente tomaria a vez do trabalho. Sua história estaria apenas no início quando então desaparece dos registros.

Encontro seu nome agora na lista de embarque, tantos anos depois. Apenas o nome, as datas de partida e chegada, o navio.

Não é muito, mas o faz chegar.

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in memoriam: F. I.
75 anos após o desembarque em Santos
28 anos após outro embarque

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foto: escultura de Tomie Ohtake em homenagem às quatro gerações de imigrantes japoneses no Brasil, na avenida 23 de maio, em frente ao Centro Cultural São Paulo, por Ricardo Imaeda

Saturday, June 14, 2008

Coincidente

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Desliza o skatista, com capacete e sax, pela avenida. Ele toca o tema da Pantera cor de rosa enquanto os amigos se perguntam com que trilha o mundo findará.

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a música é de H. Mancini

foto: linha do horizonte oeste em São Paulo anoitecendo, por Ricardo Imaeda

Thursday, June 12, 2008

Reciclagem poética



A voz do poeta R. Tagore em uma das mini praças entre as bancas de flores da avenida dr. Arnaldo, em São Paulo

Saturday, June 07, 2008

Réquiem para o mundo real

[ao som de ‘The eternal vow’, de Tan Dun, tema do filme ‘O tigre e o dragão’, com o violoncelo de Yo-Yo Ma]


Existem dias em que parece que flutuamos no espaço externo, longe da vida cotidiana. Como se fôssemos alheios às pessoas e prédios, e a corrida de ratos pela sobrevivência se assemelhasse a um videogame. Na verdade pode ser um rápido olhar do mundo real, uma espécie de efeito Matrix. Quando você tenta dizer algo, vem uma música antiga no lugar. Poderia ser aterrador, mas você apenas entra no ritmo e deixa que ela o conduza. Tudo está lá e, ao mesmo tempo, só a sua mente é real.

Alguns dias podem ser mais duros. Podem levar esses sentimentos embora e lhe deixar com uma passagem.

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foto: entrada da estação de metrô Consolação, na avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

[texto originalmente publicado em inglês pelo autor no blog Wayfarer]

Sunday, June 01, 2008

O molho da salada


Aqui estou diante de meu prato de salada e com a difícil tarefa de preparar um molho para ela. Nada parece mais complicado quando não se tem a habilidade culinária ou a vontade de recorrer àqueles compostos industrializados. Ciência e arte são requeridos e, mais que tudo, o simples gesto de criá-lo revela muito da personalidade e do estilo de cada um. Timidez ou excesso, acidez ou candura, concentração ou dispersividade, o caráter é desvelado à medida que os líquidos se vertem.

Mais do que a escolha dos vegetais o preparo do molho da salada mostra o drama de fazer encontrar duas extemidades: a que é conhecida e amada, e aquela que contém tudo o que pode ser perdido, uma vez que suscetível às incertezas e ao abandono de si mesmo.

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foto: interior do mercado municipal de Pinheiros, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

[texto originalmente publicado em inglês pelo autor no blog Wayfarer]

Tuesday, May 27, 2008

O poente está sempre agora

[ao som de ‘Calling you’, de B. Telson, trilha do filme ‘Bagdad Café’]


Se não cinco horas qual momento para perder esperanças? Junto com as sombras que se vão, na pressa diluindo-se no cansaço. As ruas sem resposta. E aquele só.

Se não seis horas que instante passará mais rápido, entre indistintos, não deixando calor? Nem figuras, que se espatifam contra o chão. E aquele.

Só.

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foto: avenida São João, centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Thursday, May 22, 2008

Em qualquer direção

[ao som de ‘Preyed upon’, de e com Tanita Tikaram]

...enquanto caminha e conta os passos
agora que os espelhos se perderam
encontra portas nas ruas
tão altas e longe quanto lâmpadas
na imagem que se forma

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foto: edifício São Luiz Gonzaga, na avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

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[texto originalmente publicado em inglês pelo autor no blog Wayfarer]

Friday, May 16, 2008

O que te move?

[ao som de ‘Gira con me questa notte’, de D. Foster, W. Afanasieff, L. Quarantotto, na voz de Josh Groban]


Por um tempo o que me moveu foi a espera. Datas chegariam com seus frutos, histórias, finais felizes.

Depois foi a busca o que me impulsionou. Haveria um sentido por que rumar. E pessoas, mais fantasmas que companhia.

Algumas horas foi a nostalgia sem realidade. Outras, planos esgotados de intenção.

Agora não parecem restar ilusionistas.
Agora, o que me move é a Terra.

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foto: detalhe da cordilheira dos Andes, Chile central, por Ricardo Imaeda

Monday, May 12, 2008

Com o esfriar enquanto anda

‘Cada passo é uma brisa que nasce’

[inscrição zen budista citada por Thich Nhat Hanh em ‘Meditação andando’]


A tarde esfria e ventos anoitecem na avenida. Pareço andar por um corredor aberto para a queda. Enquanto névoas de pessoas atravessam talvez tenha chegado o tempo.

Nas lojas de discos elas procuram pelos cantores do passado. Devem querer se agarrar às barras anti-pânico, que ainda podem ser notadas na linha do afogamento. Pelo menos uma sonoridade amiga nessas horas. E elas parecem contentes.

De volta às ruas o ar frio se condensa, espesso, na respiração do que não sabe mais voltar. Na memória alguma canção sobrevive, empurrada contra a indiferença, na dureza do que não cede.

Crepúsculos são perdas.

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foto: anoitecer em São Paulo, a partir da rua Nazaré Paulista, por Ricardo Imaeda

Tuesday, May 06, 2008

Descobertas

[ao som de ‘Both sides now’, de Joni Mitchell, na bela voz de Judy Collins]


Qualquer hora para descobrir
No andar pelos conhecidos
Sem mesmo fim
Talvez o que mude sejam apenas
Do que revela as cores

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foto: vista sul a partir do topo do Sesc Paulista, na avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, April 28, 2008

Estar lá

Deveria ser o verdadeiro aniversário da cidade. Os prédios históricos ganharam uma iluminação festiva e as ruas do centro, um público imenso. Por todos os cantos que se passava alguma surpresa de encenação ou descoberta. Acrobatas, estátuas vivas, músicos amadores, atores, cantores desconhecidos ou afamados, uma atmosfera de reveillon.

A bicicleta traça seu rumo sobre a terra, dezenas de metros mais por sobre viaduto e avenida. Não é vôo nem rodagem. Sustentada por um balão e por um fio, ela desliza como se apenas passasse. Surgiu inesperada, lenta se vai e volta depois que os que pedalam descem pelos cabos. De olhar para cima as cabeças giram para se perder e pousar em outros passos.

Em um pequeno palco alternativo de dança, no vale do Anhangabaú, um jovem casal desata sua coreografia, de desencontros e invenção. Algumas poucas pessoas atentam para eles, fim de tarde. Quando termina, outras menos chegam para conversar. Um senhor de experiência marcada no rosto, nos braços, vem estender um pedaço de papel e pedir para que o dançarino escreva ali seu nome. A princípio ele estranha mas enfim compreende. Aquele homem havia sido tocado pela arte. Ele está salvo.

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foto: palco Piano na Praça (Dom José Gaspar), atrás da Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, na Virada Cultural do ano passado, por Ricardo Imaeda

Wednesday, April 23, 2008

Os espíritos da terra

:Quando os móveis tremeram, fazendo meu corpo tremer, olhei para trás, para os lados, como se eles fossem visíveis. Como se aquela sensação viesse explicada, razoável. Agora que a estranheza, enfim, podia ser sentida nos ossos, chacoalhados na sua tentativa de segurar o que parecia cair. Poderia ser poltergeist. Alguma força desconhecida querendo se notar ou exercer seu domínio.

Só depois viria a notícia e o nome para classificar e encaixar. Mas na hora o sem sentido é o que mais agudamente fazia pesar o que podia ser sentido. A terra, enfim, tremia. Com a contundência que apenas o desconhecimento pode abarcar.

::[após o terremoto que atingiu São Paulo e outras muitas cidades do país]

Saturday, April 19, 2008

Outono pulmões

Pode o frio chegar com o vento, o tempo incerto, a luz tangente. No outono a vontade é de abastecer a casa. Talvez como lembrança de um passado remoto, guardar suprimentos para atravessar as maiores dificuldades. A estação inspira com seus frutos e mudanças bruscas. Guardar, conter. E, com os sabores mistos de estranhamento e descoberta, sair para se reconhecer em cada fragmento do mundo.

::foto: mangostim por Ricardo Imaeda

Monday, April 14, 2008

O caminho não trilhado

[ao som de ‘Pavane’, de Gabriel Fauré, na versão de Branford Marsalis e English Chamber Chorus]


Dali para diante seria assim, dividido entre as escolhas despontando no caminho, cada uma misturada a outra, promessas mal acabadas, histórias divergentes. Quanto mais próximo do ponto de separação mais o olhar se afasta do horizonte e se perde nas ondulações do terreno. Tenta fazer do obscuro um espelho, à espera do movimento. Talvez ali se encontre alguma pista, uma ajuda para decidir.

Talvez ali se passe inteira uma geração. Na esquina das coisas por vir.

[inspirado pelo poema ‘The road not taken’, de Robert Frost]

::foto: encontro da avenida Pedroso de Morais e rua dos Macunis, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, April 07, 2008

Destraços

Como se apostasse que o prazo estivesse perto do fim, os meses contados, histórias como contos, começos e meios. Para que se preocupar com esgotamento de recursos se o próprio tempo já o ameaçava de forma tão cinematográfica? Cada novo passo era, assim, sem necessidade ou objetivo.

As linhas enfraquecidas já o limitavam menos, e menos desenhavam um destino ou parada intermediária. Saía qualquer hora do dia sem roteiro, quando tinha vontade de andar. Caminhava como na contramão, baixa velocidade, um estrangeiro em língua nativa.

Era parecido com suas lembranças: surgiam do nada, duravam pouco, diluíam-se enquanto outras mal combinavam significado e repetição.

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[ao som de ‘Não sei’, de Gaya e Aloysio de Oliveira sobre tema de Chopin, na voz de Ithamara Koorax]

::foto: detalhe da praça Júlio Prestes, em frente à estação de mesmo nome, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, April 02, 2008

Nenhum lugar

Como é difícil seguir o curso...
Não há nado nem saber, companhia ou cenário nesta hora descida. Os mapas perderam definição e a memória se refugia em casa. Dessas pedras todas nenhuma parece indicar alguma coisa além de si mesmas.
Ali pode ser, não mais, talvez.
Dia e dia atormentam e dia e dia desbastam o mesmo terreno, que dia e dia se estancam e não se vão.

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[ao som de ‘Somewhere’, de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, na voz de Marilyn Horne – parte da trilha de ‘West Side Story’, em cartaz na empolgante versão brasileira de Jorge Takla, no teatro Alfa, em São Paulo]

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foto: por entre as árvores o viaduto Santa Ifigênia, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda; um dos mais belos da cidade, foi, por muitos anos, junto com o viaduto do Chá, a única ligação entre o Centro Velho e o Centro Novo, por sobre o rio Anhangabaú

Wednesday, March 26, 2008

Aceno para sempre

[ao som de ‘You’ll never walk alone’, de R. Rodgers e O. Hammerstein II, na voz de Ray Charles]


Faz tanto tempo que não nos vemos que cada segundo repartido quero expandir; qualquer gesto, calcar; e nas palavras entender a verdade. Temos tanto para conversar, retomar de um ponto suspenso há anos, lembro bem. Nem me ocorre mais sobre o que falávamos tanto, tão pouco, tentando conter o tempo que estirava. Chegará e não sobrará tempo. Então o desespero suprirá todos os atalhos, vias de acesso, pavimentos de vista e fala. Temos tanto para atualizar. Mas só a eternidade poderá conter meus saltos no percurso de um abraço. Que não mais se concretiza, não mais se contrapõe.

Quero te ver não como se fosse um reencontro, mas uma despedida.

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foto: pinheiros no átrio do templo Zu-Lai, em Cotia, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, March 21, 2008

Para além das utopias

[ao som de ‘Tajabone’, de Ismael Lo, um dos temas do filme ‘Tudo sobre minha mãe’]


Assim, no centro, você passeia como se estivesse livre. Nenhum dia a mais pela frente. Desatou os fios da rede, apagou o passado um a um. Não apenas memória. Foi quase um renascimento sobre as pistas antes tanto trafegadas. Sem plano B ou qualquer gesto dramático. Apenas um caminhar descompromissado.

E assim você passa, os outros mais acertados do que sempre, lentamente passa.

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foto: detalhe da praça Antonio Prado, com vista para o início da avenida São João, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, March 16, 2008

Aéreo

[ao som de ‘Time after time’, de C. Lauper e R. Hyman, com o trompete de Miles Davis]


É como num filme. A cena parada, eles descem à avenida no início da noite de um domingo e andam, andam, na lentidão de quem não busca. De cada passo recolhem o eco, o peso de um dia. Que ainda está lá, largado em algum canto com a pressa da cidade, e esvazia.

Escurece mais. Nos seus riscos eles a abandonam. Como a um plano, um passado.

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foto: anoitecer sobre a avenida Paulista, em direção a oeste, por Ricardo Imaeda