Sunday, September 30, 2007

Sobre cordas

[ao som de ‘Let me fall’, de J. Corcoran e J. Benoit, do repertório do Cirque du Soleil]

Ao longo do trajeto, em boa parte do tempo, ele parece estar confiante. O corpo está só, mas sente o ar que o atravessa como parte de si mesmo. Estão todos distantes e, entanto, guarda cada momento vivido com eles como relíquia. Também já compõem essa unidade. Assim gostaria de parar.

Mas nirvana (cessação) ainda demora. Rapidamente as pernas tremem e um fio de medo o perfura em quase queda.

Essa lâmina sobre o qual caminha é cruzada por ventos de tempestade com freqüência. Às vezes a paisagem o distrai. Outras, a estreiteza do chão o preocupa. E quando olha para si mesmo é o espaço vazio entre eles que o sustenta e desequilibra.

Sustenta e desequilibra. Como a mente e suas projeções. Nesse percurso que quase se apaga no balanço do ar.

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foto: vista aérea parcial de Atibaia, estado de São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Wednesday, September 26, 2007

O molho da salada

Quem não quer se resignar aos temperos prontos e não dispõe do saber de especialista tem de enfrentar o enigma das proporções e quantidades na hora de preparar o molho para a salada. Cada vez é uma nova história. Não parece haver porta para automatismo nem medidas fechadas que assegurem o sabor pretendido.

É um ato de solidão rápida. Ela se desfaz na extensão do gesto que inclina os vidros e verte líquidos, quando se dissolve no desejo comum de acertar sem saber como. Uma lembrança de poções alquímicas, alguma sorte de principiante.

Se mistura muito de tradições herdadas ou copiadas pela observação, a combinação de ingredientes também expressa o estilo e o momento de cada um. De uma forma quase fortuita, mas incisiva. Contenção, esbanjamento; acidez, suavidade; respingos, lagos.

Mais do que a escolha das verduras o preparo do tempero recolhe o drama de unir dois pontos: o que é conhecido, se gosta, e o que pode se perder, porque sujeito aos imprevistos, ao acaso ou aos abandonos de si mesmo.

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Sunday, September 23, 2007

Um

Sobre o cascalho os passos seguem como a trilha, sem um propósito definido. Sentir as pedras basta por si. Cortante e redondo, áspero, doce. Andar não para onde, mas enquanto. Enquanto as árvores simplesmente estão. E a respiração está como não costuma ser percebida.

Caminho, pedras, árvores, respiração se estendem como um só.
São um só.

[ao som de ‘Estrela, estrela’, de e com Vitor Ramil]

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foto: pinheiros e detalhe do templo zen budista Zu Lai, Cotia, por Ricardo Imaeda

Thursday, September 20, 2007

Outono ao norte

Há os que estão de partida. Para passeio ou algum tipo de iniciação. Levam uma bagagem difícil, feita de biografias cruzadas com muitos nós e laços quebrados. Entre os planos de viagem talvez flanem trechos de poemas que ficaram por concluir. Ainda guardam uma sonoridade de canção, respiros de espera, desejos de volta.

Em algum ponto no caminho de saída talvez reencontrem retratos de outras viagens. Um pouco espelho, um pouco memória. Serão companhia. Novas paisagens podem lhes impressionar e virar outras molduras. E, então, em alguma estação, de alguma cidade ao norte, entre passantes apressados e turistas indecisos, reconhecerão aquele olhar liberto, entre plataformas, bilhetes e possibilidades ainda mais encantadoras.

[para Márcia Albuquerque: boa viagem; que as descobertas sejam inspiradoras]

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foto: estação ferroviária no Memorial do Imigrante, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Sunday, September 16, 2007

olhar fixo

Como se fosse o último dia sobre a Terra.
Espera ou incerteza.
O que pode atemorizar mais?
O que adensa os passos em torno de perguntas em círculos? O que não divide nem reduz? O que não se desfaz?

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foto: a partir da Praça do Pôr do Sol, Alto de Pinheiros, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Monday, September 10, 2007

O desespero e a amora

Domingos são dias que embaralham percepções. Parecem seguir um ritmo de escoamento diferente. Mais rápido ou devagar, não importa: confundem o passageiro ao dilatar os pontos-limite para cada atividade do dia. Como se não houvesse mais fronteiras necessárias, como se tudo fosse contingente. Parecem deixar essa liberdade para quem quiser ousar, desviar passos, experimentar. Mas, talvez pela brevidade da promessa, também anunciam o final do período dessa licença. Alarga-se o mundo, que se ameaça fechar de novo logo mais.

O que fazer nessas horas? Para onde ir? A pressa incontida desenha freios quando não se quer. Uma paralisia de repetir sempre o mesmo, rotinas de um mesmo dia. E um outro fosso, talvez mais largo ou fundo: um pensar em si sem molduras fixas, sem artifícios de projetos ou lembretes de infância: um redemoinho personalizado com aceleração crescente e paisagem calma para contrastar. Como se fosse correr cada hora em uma direção, sob mapas autodestrutivos, no desejo único de não estar mais ali no momento seguinte. Apenas sair.

Sentado em um banco no Parque da Água Branca, em São Paulo, noto o calor deixar cada vez mais espaço para o vento fresco. Os patos caminham livres pelas alamedas e o canto de outras aves pontua o fim de tarde. Sinto o baque de uma amora sobre o ombro esquerdo. A fruta desliza e deixa uma mancha arroxeada na camiseta branca. A amora cai ao chão e me faz levantar.

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Thursday, September 06, 2007

Vazio em flor

Em um dos seus belos textos, ‘As flores e o lixo’, o mestre Thich Nhat Hanh reflete sobre a precariedade de apreensão do real a partir de conceitos como limpeza e sujeira, pureza e imundície. Um conhecimento mediado por palavras ou idéias que estão continuamente classificando e julgando o que passa diante do observador. Reflete também sobre a natureza interconectada de todos os seres. Assim, vendo profundamente uma flor é possível ver também o lixo em que ela se transformará alguns dias depois. Ela é flor e todos os elementos não-flor, lixo inclusive, aqui e agora mesmo. Vendo profundamente o lixo, é possível ver a flor em que ele poderá se transformar logo mais. Ele é lixo e todos os elementos não-lixo. Cada ser contém todos os demais. É vazio de uma essência própria porque é constituído por todas as coisas que não são ele. E, por isso mesmo, está relacionado a todo o restante do universo.

‘To see a World in a Grain of Sand
And a Heaven in a Wild Flower
Hold infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour’
- William Blake

[‘Ver um Mundo em um Grão de Areia
E um Céu em uma Flor Selvagem
Segurar o infinito na palma de sua mão
E a Eternidade em uma hora’]

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Saturday, September 01, 2007

e só: palavras


... nos passos que contou até se perder com os números e outros vindo da direção oposta. Passos borrados pela indefinição do olhar, luz cadente, refluxo de palavras. Que o instabilizam a cada vez que pára. E para continuar inventa novas, sem significado imediato a não ser andar. Pelos mesmos trajetos, não importa, quase espelhos, em que jamais se perdeu. E retoma as contas, na claridade em que reconhece os passos, sem pressa, em que se vai...

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[ao som de ‘É doce morrer no mar’, de e com Dorival Caymmi
... e de ‘Preyed Upon’, de e com Tanita Tikaram]]
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foto: detalhe da avenida Paulista, São Paulo, por Ricardo Imaeda
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