Monday, June 30, 2008

No canto perdido


Nessas horas findas de buscas e esperas, cansaço dos roteiros repetidos, frases sorrisas, tantas vezes falseadas, em que novamente escorregas, embora esquivo, embora escanteies, cava rasas valas ao que te velas indiferente, sem sobrenome, sem sobrevida.

Ouve o pássaro cantar, ouve os pássaros cantarem.

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foto: interior da igreja de São Francisco de Assis, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, June 25, 2008

em fios que não se entendem, entanto seguem

[ao som de ‘Os presentes’, de K. Albuquerque, na belíssima voz de Eliana Printes]


A maior dificuldade era colocar os cadarços no tênis. Fazer coincidir as extremidades em extensão quando conseguia passá-los pelos orifícios estreitos. Quando entendia a lógica das tramas por que vinham e se sobrepunham para se acharem depois.

Andar deveria ser a parte mais fácil. Como as voltas de todos os dias. E os dias sem teias.

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foto: detalhe do parque da Aclimação, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda

Wednesday, June 18, 2008

E o navio vem

[ao som de ‘Silk road’, de Kitaro]


Dois meses no mar o afastam.

Nenhum brinquedo talvez o acompanhasse dentro do navio. Talvez apenas ele mesmo, reduzido a peça de contemplação nos dias e dias através de três oceanos. E cada vez que o ponto de partida se distanciava era o que vinha a ganhar espaço. A família inteira em movimento, feito parte no desconhecido.

De norte a sul, primavera em outono, as palavras devem ter escasseado. Racionado, como o alimento da busca, na espera do que nem se saberia. Mas outro seria o mundo que afinal estaria crescendo como ele, nas promessas que tanto teria ouvido. São Paulo. Café. Terra, como essa por que transita tão lenta e fracionadamente.

Terá avistado o porto ao anoitecer, na vizinhança do sono e do susto. Talvez os primeiros passos tenham estranhado o menino, seguro em um caminho que o reconheceria de outra forma, adulto, quando o descanso finalmente tomaria a vez do trabalho. Sua história estaria apenas no início quando então desaparece dos registros.

Encontro seu nome agora na lista de embarque, tantos anos depois. Apenas o nome, as datas de partida e chegada, o navio.

Não é muito, mas o faz chegar.

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in memoriam: F. I.
75 anos após o desembarque em Santos
28 anos após outro embarque

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foto: escultura de Tomie Ohtake em homenagem às quatro gerações de imigrantes japoneses no Brasil, na avenida 23 de maio, em frente ao Centro Cultural São Paulo, por Ricardo Imaeda

Saturday, June 14, 2008

Coincidente

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Desliza o skatista, com capacete e sax, pela avenida. Ele toca o tema da Pantera cor de rosa enquanto os amigos se perguntam com que trilha o mundo findará.

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a música é de H. Mancini

foto: linha do horizonte oeste em São Paulo anoitecendo, por Ricardo Imaeda

Thursday, June 12, 2008

Reciclagem poética



A voz do poeta R. Tagore em uma das mini praças entre as bancas de flores da avenida dr. Arnaldo, em São Paulo

Saturday, June 07, 2008

Réquiem para o mundo real

[ao som de ‘The eternal vow’, de Tan Dun, tema do filme ‘O tigre e o dragão’, com o violoncelo de Yo-Yo Ma]


Existem dias em que parece que flutuamos no espaço externo, longe da vida cotidiana. Como se fôssemos alheios às pessoas e prédios, e a corrida de ratos pela sobrevivência se assemelhasse a um videogame. Na verdade pode ser um rápido olhar do mundo real, uma espécie de efeito Matrix. Quando você tenta dizer algo, vem uma música antiga no lugar. Poderia ser aterrador, mas você apenas entra no ritmo e deixa que ela o conduza. Tudo está lá e, ao mesmo tempo, só a sua mente é real.

Alguns dias podem ser mais duros. Podem levar esses sentimentos embora e lhe deixar com uma passagem.

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foto: entrada da estação de metrô Consolação, na avenida Paulista, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

[texto originalmente publicado em inglês pelo autor no blog Wayfarer]

Sunday, June 01, 2008

O molho da salada


Aqui estou diante de meu prato de salada e com a difícil tarefa de preparar um molho para ela. Nada parece mais complicado quando não se tem a habilidade culinária ou a vontade de recorrer àqueles compostos industrializados. Ciência e arte são requeridos e, mais que tudo, o simples gesto de criá-lo revela muito da personalidade e do estilo de cada um. Timidez ou excesso, acidez ou candura, concentração ou dispersividade, o caráter é desvelado à medida que os líquidos se vertem.

Mais do que a escolha dos vegetais o preparo do molho da salada mostra o drama de fazer encontrar duas extemidades: a que é conhecida e amada, e aquela que contém tudo o que pode ser perdido, uma vez que suscetível às incertezas e ao abandono de si mesmo.

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foto: interior do mercado municipal de Pinheiros, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

[texto originalmente publicado em inglês pelo autor no blog Wayfarer]