Friday, November 30, 2007

Os cata-ventos do quinto andar

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Raras vezes vi as pessoas sorrirem diante de uma obra de arte contemporânea como agora. Sorrir de uma alegria verdadeira, interior. Tanto que talvez até venham a questionar se essa instalação de Ricardo Karman,‘Pneuma’, é mesmo uma obra de arte. Porque ela nem mesmo tem uma materialidade visível, já que utiliza o vento como matéria-prima. Não importa. Não é uma obra para se ver diretamente, mas para se sentir na pele. Mesmo assim, o visitante, ao usar algum dos apetrechos coloridos, todos com cata-ventos acoplados, faz com que o vento também ganhe uma expressão visual animada, lúdica, em um percurso que vem recheado de sensações de soltura e divertimento. Bolas como globos terrestres iluminados por luz negra subitamente despontam correndo na contramão. E espelhos laterais devolvem a imagem estranha, giratória, do avatar movido pelo ar em profusão. É quase uma brincadeira, ou é toda uma brincadeira, em que não é preciso pensar nada, apenas viver o momento.

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‘Pneuma’, de Ricardo Karman, está disponível para a experiência do visitante no Centro de Cultura Judaica, em Cerqueira César, São Paulo, até o dia 21 de dezembro. Nesse belo prédio, projetado por Roberto Loeb, estão em exibição outras obras interativas de engenho e inventividade, como o ‘Reconstrucidades’, do coletivo Bijari, que utiliza peças que podem ser livremente manipuladas sobre uma mesa, que projeta as imagens para uma tela. Ao contrário do ‘ReacTable’, com quem se assemelha, o produto é menos sonoro ou musical, e mais voltado ao desenho de uma urbanidade desejada.

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[O acompanhamento musical óbvio seria ‘O vento’, do mestre Dorival Caymmi, na voz de Mônica Salmaso, uma de suas intérpretes mais sensíveis. Mas a instalação de Karman inspira também outra trilha, ao sugerir uma atmosfera próxima à da canção de Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, ‘Giz’. Quem conhece a canção há de lembrar do seu caráter nostálgico, ao mesmo tempo alegre e triste, reassegurado e sereno, com seus versos:
‘Desenho toda a calçada/Acaba o giz, tem tijolo de construção/Eu rabisco o sol que a chuva apagou//Quero que saibas que me lembro/Queria até que pudesses me ver/És parte ainda do que me faz forte/E, pra ser honesto,
Só um pouquinho infeliz’]

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Tuesday, November 27, 2007














Para além dos altos e baixos existe essa pouca viagem.
Escassos embarques, cenários repetidos. O olhar condicionado. E a vizinhança do desconhecido, mas reincidente.
Nessa hora saturada contemplar é quase partir.

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foto: vista sul, a partir da Praça do Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros, São Paulo, por Ricardo Imaeda

Friday, November 23, 2007

Do alemão quase latim

Um dos prodígios sonoros de J.S. Bach ressoa a cada nova audição de sua obra para vozes humanas. Em qualquer de suas extraordinárias cantatas, motetos ou missas, o ouvinte pode se dar conta de uma verdadeira mágica transfiguradora além do prazer da música em si. O gênio criador desfia uma sintaxe melódica que consegue limar as pontas e arestas rascantes do idioma alemão. Tal é a façanha que quem ouve chega a pensar que as peças são cantadas em latim. O texto flui com uma liquidez sem crise ou colisões. Bach parece se abastecer de outra fonte e, ao compor, verte uma natureza alterada de seu próprio idioma: mais esguia e toante. Mesmo Schubert e Schumann, em seus belos lieder, não lograriam vencer as escarpas da língua.

De Bach sempre se ganha muito. Como na cantata BWV 140, ‘Wachet auf, ruft uns die Stimme’, de frases longas, encadeadas e intensas, que celebram o casamento da alma com o salvador. Mais do que testemunhas somos envolvidos em uma sedução serena, dupla humana e angelical. Uma experiência palpável do sublime. Ao contrário dos detratores do paraíso (os que o condenam como aborrecido e entediante), Bach nos oferece uma vivência de descobertas e vibrações a cada nova nota.
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Quem estiver em São Paulo tem a oportunidade de assistir ao concerto regido pelo maestro Roberto de Regina, com o Coral Paulistano e solistas da Orquestra Sinfônica Municipal, dia 24, no Teatro Municipal. O programa inclui três cantatas (BWV 4, BWV 131 e BWV 140) e o moteto Singet dem Hern.

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:foto: prédio do Instituto Goethe, antes ocupado por um convento, nos altos da rua Lisboa, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Tuesday, November 20, 2007

Acaso fluir


Não, não é uma luta. Nem algo assim tramado na tensão de um confronto. Se sobreviveram poderá ter sido não por esforço ou argúcia, mas por um acaso. Um sem razão, sem glória, confluência de dez mil fatores muito diferentes entre si, apontando em direções opostas, mas em condensação justo aqui.

Ao contrário do que gostam de clamar os defensores do padrão guerra, encarar a vida como um acaso é um jeito de desonerar ombros e palmas, evitar sofrimentos desnecessários. Mais que tudo, repõe a humildade de reconhecer a limitação do próprio espectro: o desconhecimento do que vem, porque multiplamente condicionado, porque mistério.

O acaso também faz par com o jogo, o brincar, o improviso. Um passeio sem roteiro muito elaborado, aberto às surpresas de cada passo.

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[ao som de ‘Greensleeves’, de domínio tradicional, na inspirada e multifária interpretação de Fortuna e o Coro dos Monges Beneditinos de São Paulo]
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foto: ninféias do Jardim Botânico, em São Paulo, por Ricardo Imaeda

Saturday, November 17, 2007

como rodo, sem remos










Os pés se molham dentro dos sapatos cada vez mais molhados. Logo sente as ruas escorrerem por entre seus dedos agora que a chuva parece não terminar. E lhe pesam alagados mais soltos que dantes. Ao deslizar sobre as calçadas é sobre as nuvens que lhe escapam o que pensava sobre altos e baixos em que parece escorrer desequilibrado. Mais se molham os pés, liquefazendo na impossibilidade de se livrar dos sapatos, na fluência do que lhe escapa, aos poucos, na correnteza de que não consegue se apartar.









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fotos: cachoeira de Deus, em Penedo, por Ricardo Imaeda

Monday, November 12, 2007

Arremesso livre

Às vezes é mais reconfortante sentir-se suspenso no tempo-espaço do que pisar firme no chão de uma certeza predatória. Melhor flutuar na vaga que chafurdar na lama. Errar de pára-quedas ao invés de guiar com crachá.

Nesse roteiro de segunda-feira os jargões não isolam mais. São ecos para eles mesmos. Na sensaboria que lhes basta, na superfície que lhes faina, da da da.

Mal se percebem sem fios. Que lhes servem e se servem. Compram amuletos de prosperidade para sorrir e não serem tentados a duvidar. Ainda conseguiriam se o tropeço os lançasse a um soco de ar?

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foto: avenida Ipiranga, centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda
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Wednesday, November 07, 2007

Na solidez do sangue

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[ao som de ‘The unfolding’, de e com a assombrosa voz de Lisa Gerrard]


Cenas triviais se transformam em parábolas, o aparente vagar no trânsito sempre congestionado revela uma tensão diferente. Apesar da sensação de proximidade da locação, alguma coisa se fratura quando o filme acaba. Cabem desajustes, cabe o gosto da estranheza. Em ‘A Via Láctea’, a São Paulo de Lina Chamie poderia ser qualquer outra grande metrópole. Ela parece ser uma ponte quebrada. Separa e repete as ações, pontos de vista, referências. E na polifonia, poliartística, mesmo assim, é a palavra a condutora, muitas vezes artificial, do percurso que se finda. Quem abrirá caminho para ambulâncias se não se perder na leitura de versos? Que gesto não estará significado quando apenas se começa a desenhar?

O que parece tão trivial ganhará outro estatuto se revestido de citações literárias ou musicais? Sedimentará camadas insuspeitas em transferências para novos territórios? Ou chegará àquele beco da cidade, entre mercados e solidões, na insuficiência do pulso, na solidez do sangue?

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Assista a ‘A Via Láctea’, de Lina Chamie, qualquer que seja sua cidade e não tente reconstruir nada

[Para muitos o filme permite um primeiro contato com o belo poema de Mário Chamie, ‘Chuva interior’]

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Saturday, November 03, 2007

Libera me, Domine

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Noite de Finados, Teatro Municipal de São Paulo. Não imaginaria tanta gente em meio ao fim de semana prolongado. Quantos terão vindo para ouvir o ‘Réquiem’ de Fauré pela primeira vez? Apesar do tema parecer imediatamente afim à data, não será de morte que a audiência se envolverá. Desde as primeiras notas a interpretação do Coral Paulistano parece querer dizer que é de libertação que a música trata. A torrente serena de um partir sem luta. Nas vozes e nos instrumentos desembaralham os laços do fincar na terra.

Se é possível ainda respirar, deixemos que a atmosfera se esgote na contemplação da Arte.

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[O ‘Réquiem’, op. 48, de Gabriel Fauré está disponível em diversas gravações. Uma das mais belas é a do London Musici, com o Trinity Choir College, Cambridge, regência de Richard Marlow, e Camila Otaki (soprano) e Mark Griffiths (barítono), pela Conifer Classics]

Thursday, November 01, 2007

empuxo


É um vaivém

O corpo que se levou

Para o poema que se traz