Wednesday, October 11, 2006

Urbana, Legião









16 de junho, 1994
Ginásio do Ibirapuera, São Paulo




Seria o primeiro show da Legião Urbana que eu veria. E era um momento tão especial que eu queria reunir todos os meus amigos. Todos? Talvez apenas os mais próximos (nem eram tantos). Tinha acabado de sair ‘O descobrimento do Brasil’ e era época de divulgação do disco. Sabia poucas das novas canções. Havia, claro, ‘Perfeição’ e seu retrato irônico da moral nacional. Mas esperava, também, todos aqueles sucessos antigos (e nem tanto) que poderia gritar ou sussurrar, com a cumplicidade de tantos desconhecidos irmãos.

Seria talvez clichê demais falar em magia, encanto. Ocorre que foi isso. Tudo muito desconfortável: as cadeiras para não ficar sentado, o palco longe, o som atravessado, engasgado, e eu, com aquela pasta de trabalho, aquelas roupas quase sociais. Mas tinha um sentido ali. Uma comunhão. Todos nós estávamos ali para ouvir e cantar e celebrar a nossa não estupidez. Fazer ali a nossa catarse coletiva. Relaxar a guarda de tantos embates diários. Chorar, como só é possível no meio de ‘Andrea Doria’.

Quem vai dizer o que sentiu?

Lembrava de meu conhecimento tardio da banda e seu universo de sentimentos. E dos cinco discos.

Em dois anos estaria eu em casa nova, finalmente só, como jamais pensei que sempre estivesse. Ouvir os discos, encolhendo-me em antecipação de frio, geadas. Ali o palco, ainda vazio. E penso: afinal.

Nenhum dos amigos presentes. Talvez fosse melhor assim. Legião é para ser ouvido na solidão ou junto a estranhos. (‘Sempre dependi da gentileza de estranhos’, não é?)

E mal pressentia ser esse o derradeiro show. A morte, dois anos depois. Como o primeiro apartamento. A primeira vez, minha última chance.

Quem vai dizer o que sentiu?

Um mergulho no nosso próprio poço, menos líquido que de inseguranças. De um plasma sem luz, escavado nas falhas da alma. Que nunca é fundo o bastante.

Olho para todos os lados. Movimentos de braços, lenços, cabeças. A voz de Renato esbraveja, atordoa por entre as ferragens. E vai se impondo, pairando sobre o estádio qual profeta, incenso ou dor.

A imensa dor que sentes.

O volume alto ecoa nos ouvidos. Persiste mesmo fora, mesmo depois. Mesmo agora. Procuro andar um pouco, quase meia noite. Amanhã tem trabalho de novo. E tem show também, mas não vou poder ver. É melhor tomar um táxi, demora o ônibus. Mereço algum conforto agora. Parece incrível, mas consegui ouvir a todos e a mim mesmo, com toda a massa sonora. Mereço folga de algum esquecimento.

Dizia um personagem de filme que repetia para não esquecer. Aqui estou, andando sem destino, pelas ruas de minha cidade, apartamentos acesos, vivendo em separado, pensando ouvir alguém dizer meu nome.
Pareço repetir sempre a mesma história.
Parece verdade.

Quando o que for finalmente se dissolver.

[in memoriam dos dez anos do passamento de Renato Russo e da Legião Urbana]

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