RespirarE o dia terminando
Voltar a ser um
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foto: praia do Jabaquara, em Paraty, por R.I.
Escrever para compreender
Não são apenas os antibióticos que demandam uso em um intervalo regular e preciso de tempo para poder surtir um efeito sistêmico, contínuo. Quando se desembarca do movimento seguido dos dias quase sem relevo ou quando alguma dor física vem bater é que se percebe sua falta.
O processo pode não ter sido muito universal e o próprio concurso em si pode ser questionado, como qualquer escolha dessa natureza. Mas a eleição do animal-símbolo de São Paulo deixa matéria para pensar e vagar.
Assim, por acaso, reencontro o sabor da mexerica da infância aqui, tão longe, tão noite. Aquele gosto de início, anos inteiros por percorrer, finais de almoço, provas e lições de escola. Um pouco azedinha nos cantos, a cor intensa, gomos de recheio vigoroso no desmanche. Sabor então guardado (ou perdido) em algum dia comum, sem saber que por tanto tempo.
A tarde inteira passou nublada, ameaças de chuva de nova frente fria. Ela está quase deserta com tanta água em torno. Talvez apenas as aves continuem alerta, ligando terra, mar e céu. O resto parece parar. Até as nuvens, que só voltam a se mover dentro das ondas, evaporando com força em rugidos contra a areia.
Algumas cidades se infiltram na memória através do olhar; outras perduram no paladar. Mas Paraty fica para sempre a partir dos pés. O piso espartano do centro histórico deixa marcas fundas em quem por ali passou. Como se equilibrar nessa sequência irregular de curvaturas e arestas, lisos e rascantes, reentrâncias e gumes? É talvez a possibilidade mais viva de experimentar hoje como deve ter sido dura a vida na colônia. Andar deveria ser um exercício diário de atenção vigilante.
Contra o peso da idade, a leveza do olhar de primeira viagem. De iniciante na arte de olhar cada pedaço do universo com uma consciência desperta. Tudo começa a fazer sentido porque não é preciso mais explicar para se entender.
Não existe dor maior do que se sentir perdido em lugares tão conhecidos, como a avenida Paulista. Ou dispondo de pessoas razoavelmente próximas, ainda assim ausentes. Nenhuma canção confortaria, nenhuma lembrança. E tantos passos, quilômetros de asfalto.
A aridez do dia a dia transborda e se coagula em tantos filmes sobre o sem sentido, semana pós semana. Estão lá perdendo a cor, palavras planas de relevo. E não existe mais nenhum passado a que voltar. Só uma estreita faixa, mal sinalizada, por onde o desconsolado tropeça e o sopro se perde. Assim vai também quem o acompanha, cada vez mais sem resposta, sem retorno.
A época de florescimento e colheita de alcachofras é uma oportunidade boa para visitar os pequenos sítios produtores e contemplar. Contemplar a vida simples, o tempo mais lento, as pequenas e grandes sinalizações da natureza. Nessas flores a beleza visível e a inesperada vivem lado a lado, à espera do olhar de quem passa. De quem para.
[Em comemoração ao extraordinário feito de resgate dos mineiros no Chile]
Cada vez que volto à cidade da infância para votar é como se reencontrasse alguém que não tivesse passado, ainda vive aqui. Não ficou naquele colégio nem se dissipou no tempo. Ele continua não como um fantasma, mas de um jeito que me faz lembrar da imortalidade das coisas sentidas.
É muito cansativo andar por entre esses dois pólos: de ser ninguém ou ser alguém, fundir-se ao todo ou destacar-se dele. Ser um monge ou ser um star. Tantas vezes a vontade fica no apagamento, quando o descanso parece ser o caminho mais tranqüilo. Mas é um repouso com sofrimentos também, esquecimentos, indiferença. Um sentimento de ser deixado de lado. Assim, um impulso de sobrevida acende o farol de alguma realização bem sucedida, algum sucesso bem realizado. De novo vem a instabilidade do movimento. E os sobressaltos. Sem fim.
Ao contrário do que acontece normalmente, quando se costuma lê-lo na juventude, somente agora tenho esse encontro tardio com o ‘Siddharta’, de Herman Hesse. Tanta demora no contato traz suas compensações. Já não é mais uma abertura de portas, a descoberta de um mundo novo. O que agora acontece se aproxima mais de um reconhecimento, afinidade de caminhos percorridos.
Lá estou, no espaço depois do horizonte, sem um pensamento de apoio ou motivo, em alguma espera modesta, adiante. Os dias se tornaram retratos e as palavras, desconhecidos.
[ao som de ‘Mean old world’, de e com Sam Cooke]
‘É assim mesmo: depois que ousamos chegar à dor do outro, a vida se transforma num absoluto.’
E existem todos esses tempos alongados de uma espera sem motivo, sem saber. Dias mais dias em que não se faz nada de progressivamente útil, produtivamente acumulável. As chances nem vêm nesse fundo de vale.
Com quantos renascimentos se pode contar, quantas novas vidas para renascer em terras tão longe? Ou aqui mesmo, neste lugar que passa a se não reconhecer, estranho com uma cara por demais conhecida? Quanto fôlego é preciso abastecer para seguir, simplesmente seguir...
Não adianta o incessante movimento de carros, nem o vazar de horas. A fala intensa da mente vai se aquietar agora que os passos se tornam mais lentos. No vazio sob os pés se iluminam fachos de saída.
Primeiro foi o medo, esse fascínio da queda e do desconhecido. Por muito tempo restou apenas como força de arrasto. Passava em volta de todos os gestos e pensamentos, pendendo em sombras, os prazos perto do fim.
Assim passaram dias e meses sem notícias. Como se tivesse partido, história finda. Meses, anos.
Uma vez que são muitos os dias comuns, que tal seguir com eles como em uma história de suspense, expectativas de encontro e desfechos inesperados?
Vejo flores na terra devastada. É apenas uma questão de tempo. Elas continuam, como partes de um só corpo esquecido, ainda quando ninguém possa perceber. As cores estão lá, mais vivas quanto menos evidentes, silenciosas na sua potencialidade.
Ficou distante por algum motivo. Na pressa imediata qualquer parada parece trazer atraso. Em meio à turbulência seu raio de caminhada fica mais e mais restrito. Longe, sem sair muito dos percursos alcançáveis em pouco tempo.
Deixando para trás a multidão e o burburinho à espera da apresentação da orquestra municipal e do Coral Lírico, um momento de parada e respiro prolongado. Entrar na Pinacoteca de noite só nessa época. E só assim, com o escuro natural, para apreciar em plenitude essa obra. De delicadeza e força, no pulsar das luzes e canto de pássaros.
Alice quer mais voltar para casa do que ficar no mundo subterrâneo. Pensa como Dorothy, de ‘O mágico de Oz’. Afinal, todo esse cotidiano de aventuras não parece ter a densidade da superfície. Talvez venha a sentir falta daquele gato de um peso vaporoso. Ou das mudanças tão imediatas de volume que a deixam andar por todos os cantos, ainda que sempre fora de escala.
[ao som de ‘Teardrop’, do Massive Attack]
Começo a criar uma play list com as canções da minha vida. Não uma simples relação de músicas que marcaram a biografia, tingiram com dor ou alento os dias, mas também aquelas que, mesmo sem ter significado tanto na época, traduzem como ninguém a personalidade, o espírito, o jeito de ser.
Ventos particulares. Agitam intensa interiormente em dias parados. Tantas vezes chegam para mostrar a face curta da estabilidade. As pontes balançam, o abismo escorrega. Afundo os passos para abraçar a terra. Os fantasmas todos parecem voltar, íntimos de tão pouco esquecidos. Querem se instalar de novo, agouros do que desanda, danosos.
Olhou para o alto em um movimento quase brusco. Os versos da canção emergiam de um sono de mais de vinte anos. Não era para entender, buscar razões. Simplesmente havia música. Quis lembrar do restante, mas apenas conseguia repetir o começo. Como se estancasse ali a passagem, toda possibilidade.
Existe uma hora exata. Se deixado para depois simplesmente não acontece. Vai figurar apenas como mais um item na agenda, mais uma das coisas que nunca viverá. Talvez seja assim também com as palavras. Parecem deslizar em uma plataforma de lançamento, prontas para saírem ou caírem esquecidas.
“Seu rosto brilha em reza
[ao som de ‘We’ve only just begun’, de Paul Williams, com os Carpenters]
Do nada o que era rotina respira ventos de estrangeiro. Os menores movimentos condensam olhares. Não é outro o lugar, não mudou a pessoa. E, entanto, parece deslizar com outro significado o mesmo passo. Sem qualquer conceito ou julgamento, intraduzível em palavras, apenas presente. Pode imaginá-lo sonho – desperto, inconsciente. A cada instante uma outra coisa.
Algumas coisas são cíclicas e outras, de uma linearidade sem clemência. As feiras se repetem toda semana, mas o envelhecimento segue irremediável. Parece que se subtrai de cada gesto um pouco da energia cada vez. E tantos outros ultrapassam seu caminho em velocidade ampliada. Moinhos cadentes.
Muitas vezes não se sabe por que caminhos andou, nem que outras chances haveria de encontrar de novo o que hoje se distancia. Parecem lugares de sonhos mal dormidos ou, quem sabe, mal acordados. Não trazem marcas de localização, não fornecem pistas. Flutuam como fantasmas. Como faces sem nome. E assim continuam a impor seu estranhamento aos dias, estando sempre a partir.
Parece como estar em um mirante, voltando-se para cada outro lado, sem saber onde fixar o olhar. Mas não para alguma beleza distante. De qualquer ponto pode sobrevir o risco, a carga do que se tem que suportar. Por quanto tempo mais? Quando chegará a hora de deixar de esperar?
Em um dos motivos mais bonitos do filme ‘A Partida’ (direção de Y. Takita), é uma pedra o veículo de comunicação e significado, transmitida de filho para pai para filho. Depois de muitos anos ela diz do que havia ficado de sentimento, rompido pelos gestos errados ou sinais mal interpretados. Nas mãos dos dois, separados pelo tempo e vida, o pequeno seixo rolado mostra a eloquência do sentido emudecido. E é o vínculo mais imediato com a natureza sempre marcante, que emoldura e pontua a evolução da história.