Será possível afirmar algo tanto tempo passado, tão pouco faltando? Talvez apenas contemplar. Ou escapar para onde não se lembrem. Mas existe o vazio. Que faz compreender tudo.
:: foto: aves junto à rosa dos ventos e ao lago no parque do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, por R.I.
Parar. E deixar que a correria dos outros siga seu rumo a qualquer abismo. Respirar. Ainda que quase tudo se torne estranho, mais estranho do que até há pouco pareceu. Contemplar o que resta. E não saber nada.
:: foto: fonte no Parque da Água Branca, na zona oeste de São Paulo, por R.I.
Se você olhar profundamente, as atribulações do cotidiano não têm sentido. São invenções a que se apegam aqueles com medo de seguir sozinhos. Com todos os ritos de necessidade e recompensa, conferem um estofo de estabilidade, segurança. Mas parecem extrair, em troca, qualquer sabor de verdadeira existência.
Se você olhar profundamente, não perderá as diferenças que o trouxeram ainda hoje a este caminho sem destino, mas por isso mesmo, pleno de significados.
:: foto: afloramentos de granito no núcleo Pedra Grande do Parque Estadual da Cantareira, zona norte de São Paulo, por R.I.
Caminho por entre os corredores de alguns centros de compras nesta época de festa do consumo e observo tantas mercadorias que não virão para mim. E nem imagino que irei para elas. São reluzentes como promessas, mornas como convites. Dispostas em sucessão, fornecem uma amostra dos resultados a que o engenho humano chegou.
Tanto detalhe, tanta variedade. Diferenças muitas vezes forçadas para ganhar o olhar de novidade. Que flutua entre os enfeites e os devaneios, no conforto de um ar condicionado e mentes recombinadas.
:: foto: decoração do canteiro central da avenida Paulista, em São Paulo, no final do ano passado, por R.I.
Nesta hora, se percebesse o mundo da forma como fazia, deveria sentir um imenso tédio, uma insatisfação sem fim. Deveria acolher como derrota o destino que se condensou à minha volta. E seguiria com pesar, cessando passo a passo a velocidade até que algo se partisse para sempre.
Mas não é mais assim, embora nada tenha mudado de fato. É como aquele ônibus de dois andares, se lembra? Os dois planos da existência, lado a lado (ou acima e abaixo). Olhar para cada coisa em profundidade, não mais como um outro, mas como parte do universo. E me ver dissolvido na fração que se perde no percurso.
:: foto: detalhe do interior da Catedral Metropolitana Ortodoxa, no bairro do Paraíso, em São Paulo, por R.I.
Quantas vezes terá olhado para o céu, dia ou noite, não em busca de algo extraordinário mas apenas de uma densidade diferente. Algo que o isolasse da rua e da vida como era gasta.
Por segundos restou entre os poucos espaços ainda livres, contemplando o que permanecia. Até quando desceu. E não saberia nem mais para onde.
:: foto: detalhe do jardim e da Casa das Rosas, na avenida Paulista, SP, por R.I.
Nesta última viagem de ida e volta rápida ao Rio de Janeiro o motorista de táxi faz uma daquelas perguntas que exigem resposta concisa e argumentada. Não foi dirigida a mim, mas deixou muito a pensar. Dizia ele que nunca tinha estado em São Paulo, perguntando logo em seguida se a cidade era bonita. Minha amiga alongou uma pausa para finalmente desfiar suas considerações.
O que faz uma cidade? De que beleza se trata?
Qualquer que seja a resposta parece que ela vai se contrapor à imagem que se tem de sua própria cidade. Como se o depoimento do outro sobre o lugar de sua familiaridade viesse a compor com aquilo sobre o qual se tem algum domínio – a opinião, o entorno conhecido. E devolve a quem responde uma reflexão que talvez não estivesse acostumado a fazer.
:: foto: panorâmica de São Paulo a partir da Pedra Grande, no Parque Estadual da Cantareira, zona norte da cidade, por R.I.
Qualquer dia desses as coisas deixarão de se repetir. O que antes era automático perderá velocidade, chegando talvez até a parar. Pode se que passe despercebido entre tanta informação reciclada. Lento como poucos seguirá por algum estreito enquanto o tempo não o apagar.
Talvez chova, talvez fim.
:: foto: escultura de Tomie Ohtake e edifício Santa Catarina, na avenida Paulista, em São Paulo, por R.I.
O canal de tv History tem apresentado uma série de documentários sobre o que aconteceria ao planeta sem a presença dos humanos. É reconfortante saber que a natureza retomaria todos os espaços em pouco tempo, não deixando nenhum sinal da passagem daqueles que tanto fizeram por destruir e aniquilar a vida e as outras espécies.
Mas há sempre o risco de alguma espécie evoluir e replicar a trajetória já conhecida. Eis o destino que parece rondar a Terra. Será essa a história guardada, de autodestruição depois de algum tempo? A incompatibilidade em manter um equilíbrio?
Nada parece sobreviver ao movimento, ao escorrer da vida.
:: foto: detalhe da fachada do Museu de Zoologia da USP, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, por R.I.
Parece ainda durar muito o percurso dessas poucas centenas de metros. Dessa cidade que insiste em sobreviver depois de infâncias findas. A cada volta estão lá, transfiguradas, as apreensões suspensas de quem não sabe como as histórias se resolverão. Se é que um fim chegará na travessia das fronteiras.
Não é mais o mesmo transcorrer das horas. Mas a pressa dos outros só me retarda os passos. Que sobrepesam, afundam, e correm sem parar.
:: foto: detalhe da região central da cidade de Osasco, por R.I.
Em dias nublados e com garoa pode vir a lembrança daqueles colegas de escola, tão distantes do passado. Que trajetória terão seguido? O que estariam fazendo hoje? Talvez seja mais que saudade. Querer saber de suas vidas é um pouco o desejo de ficção. De criar histórias possíveis de se imaginar para si próprio. Uma outra existência a partir dos esboços de tantos que já estiveram próximos. E onde estarão?
:: foto: detalhe do parque Ibirapuera, na região sul da cidade de São Paulo, por R.I.
[ao som de ‘Who knows where the time goes’, de S. Denny, na voz de Nina Simone]
Qualquer hora despertas luzes chegam Naturais como nunca antes pensava Sem dor, nem ao menos na troca Porque ainda caminha perto O sopro, o gosto do fim
:: foto: anoitecer no bairro da Liberdade, região central de São Paulo, por R.I.
Do lado de lá, e quase todo o entorno, a correria segue sem tomar respiro. Movidos por qualquer coisa sem nexo real, eles se exaurem no desespero de chegar ou, ao menos, não naufragar. Correm cada vez mais longe, tentando tomar posse do que sempre termina por escapar.
Talvez, se virarem para o lado e tiverem curiosidade, estranhem aquele que caminha lento, denso em seu passo. Aquele para quem a poeira do caminho guarda todos os outros seres, toda a verdade da existência.
...
Nas folhas das árvores os dias são o chegar e partir da luz do sol ou da chuva. Não mais pedaços de uma agenda. Nenhum objetivo. Nem sofrimento.
:: foto: detalhe do parque Burle Marx, na zona sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Olho para os lados em que o barulho deixa estragos. Sem os apoios de ontem não reconheço mais os lugares nem as figuras da história. Estão bem aqui e, ao mesmo tempo, estão perdidos. Como se tivessem se soltado e agora vagassem por si, senhores da sua liberdade.
Não são mais cenários dos meus desencontros ou testemunhas de outros projetos. Desligaram-se, simplesmente.
Estranho contemplar paisagens desacorrentadas. Têm um gosto de passado mas recendem a desconhecimento.
:: foto: vista do largo de Osasco a partir da estação ferroviária, por Ricardo Imaeda
Se você soubesse que teria mais vinte anos de vida (nesta vida), mudaria alguma coisa? É certo que é difícil precisar assim: vinte anos. Mas suponha. Parece que depois de algum tempo a questão desapareceria, atropelada pelos problemas do cotidiano, de sempre. Bem diferente seria se o prazo fosse de dois anos. Apesar de talvez mais desesperador, esse período parece mais cabível em qualquer tipo de planejamento. Do que seria priorizado e experimentado até do que seria empurrado para o final da fila.
Vinte anos parecem muito e longe. Até quando se olha para o passado. Ou não? Algumas roupas se conservam, intactas ou gastas, muitas fotos, escritos. Neles podemos reconhecer um pouco daquilo que já não é. Parecem guardar o que se desprendeu da pessoa que partiu e ainda restou.
Para diante só provas imateriais. Tão só dentro de si próprio. Assim como talvez tenha sido cada dia.
:: foto: detalhe d’As Quatro Estações, obra de Tomie Ohtake, na plataforma de embarque da estação Consolação do metrô de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Sem trabalho, as longas pausas criam tempo livre e terreno para a meditação (andando) e o desenvolvimento espiritual. É como se houvesse aberto uma porta para outra via, paralela e, ao mesmo tempo, tão diferente. Ainda aqui, ainda agora, mas com outra natureza.
:: foto: sino de fazenda de café, peça do acervo da Bolsa do Café, em Santos, São Paulo, por Ricardo Imaeda
Ter tempo para ler os livros. E reler os livros que se leu antes apressadamente, sem o devido preparo ou prazo de decantação. Mais que viajar para outros planos de realidade, é reencontrar as vozes ainda não expressas. Aquele Salinger da adolescência de volta traz a atmosfera e o espírito do passado, mas o horizonte agora está diferente. É como se as referências da lembrança, intermitentes, empalidecessem sem o apoio de imagens.
Reler não recupera mais nada. Mas, quem sabe, pode ajudar a terminar bem.
:: foto: trecho da rodovia Fernão Dias, na divisa entre São Paulo e Guarulhos, por Ricardo Imaeda
O concurso de fotografia de árvores, promovido pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, ofereceu mais uma oportunidade de olhar para a cidade a partir de outro ponto de vista. E reencontrar belezas silenciosas ali onde um dia se olhou para mais além, no engasgo de problemas com que não se sabia lidar, de ameaças que se faziam insinuar, sem saídas.
Nesse caminho elas são mais que paisagens. Absorvem, com generosidade, o sopro das aflições de quem mal consegue contemplar e inspiram. Derradeiramente inspiram.
:: foto: detalhe de praça-mirante na rua Cerro Corá, no Alto da Lapa, São Paulo, por Ricardo Imaeda
Algumas vezes temos necessidade de nos certificarmos que estamos aqui e agora, vivos, presentes. Que tocamos o chão de verdade, as coisas existem de fato. Porque poderia parecer um sonho ou miragem, com o ritmo acelerado em que transcorre tudo.
Mas aí chega outra hora do cansaço desse não parar, do desejo de se esquecer dessa vida, buscar saídas. Ainda que temporariamente, com bilhetes de volta. Uma vontade de ficção: outras possibilidades, se possível outro destino. Sair de si, ligado a si.
É preciso mais que imaginação ou desvario. Talvez um aceno quase imperceptível em meio aos bons ainda mais perdidos.
:: foto: detalhe do interior da Casa das Caldeiras, antiga unidade fabril e hoje um espaço cultural no bairro da Água Branca, zona oeste de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Quantas vezes não retorna a sensação de que as agruras dos dias parecem voltar como das outras vezes, na estranha impressão de que se passa de novo pelos mesmos lugares?
Se é sempre o incerto o que dura, o que há para esperar? Ainda que a sabedoria instrua a não aguardar nada, é difícil resistir ao trabalho da cogitação. O desejo da mudança faz quase mover o corpo. Mas talvez fosse melhorar parar e apenas respirar.
:: foto: detalhe do jardim do café do Páteo do Colégio, na área de fundação da cidade de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Não adianta acreditar nas palavras que lhe entoam. Elas saem e chegam com as melhores intenções, falhas. Estão elas mesmas iludidas, no irrequieto círculo de repetições que percorrem na busca do que não virá.
Enquanto isso faz chuva sobre a cidade. E pássaros cantam.
:: foto: flor de lótus aberta em um fim de domingo no bairro da Liberdade, região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Quando finalmente o encontrar olharei para baixo e para cima, não sabendo o que esperar. Assim seguirá a noite, entre assombros e incertezas.
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fotos: cenas do espetáculo ‘Os reis preguiçosos’, da companhia francesa Transe Express, no Parque da Independência, Ipiranga, São Paulo, em noite de sábado antes da chuva: 1. cortejo, com carro alegórico da sereia à frente e o Museu Paulista ao fundo; 2. roda com o peixe, na esplanada; 3. móbile, com acrobatas e trapezistas, junto ao Monumento
[ao som de ‘E não vou deixar você tão só’, de A. Marcos, na voz de Toni Platão]
É uma vontade de ir embora. Que nenhuma companhia veio se somar mais uma vez, mais um fim de semana. Talvez em outras galáxias, quem sabe. Sem essa face, algum sorriso, mais descompromisso. Um deslizar mais leve em direção ao mesmo abismo. Ao fim desse dia.
Ao fim do que parece desaparecer com cada vez mais rapidez.
:: foto: detalhe da celebração do Tanabata Matsuri (Festival das Estrelas), em fim de tarde de domingo no bairro da Liberdade, região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Ouço ainda, sem parar, a melodia que flutua como conforto nos dias em seguida, sem apagar. Foi assim algum tempo, muito tempo, através de ruas de destino incerto, olhos fixos em contas a vencer. Enquanto nas linhas da canção uma simpatia vingava frágil, insistente. Balançava a cabeça, negava o que não poderia suportar. E marcava o ritmo de um passo para fora.
E cantava baixinho sem saber a letra ao certo. Agora que as vozes findavam mais cedo. Ainda cantava.
:: foto: praça do pôr do sol, no Alto de Pinheiros, São Paulo, por Ricardo Imaeda
Talvez nem seja assim tão doloroso ou parecido. Pensar que alguma coisa fica depois do sopro findo. Traços do que um dia se escreveu, plantou, construiu. Sobreviver na memória sem restos físicos, apenas como inspiros. E assim ocupar um tempo de outra esfera, absoluta. Nas horas que se gastam dorme uma paz em volta de uma espera.
:: foto: detalhe da rua Diógenes Ribeiro de Lima, no Alto de Pinheiros em São Paulo, por Ricardo Imaeda
Ela dança com seu filho no colo. Ainda é bem jovem e parece reviver noites de solteira diante da avenida. Ao seu lado, mas um pouco atrás, está o marido, com uma mochila cheia de produtos para a criança. Ele parece não se mexer – ‘tough guys don’t dance’. Também é jovem, embora talvez a paternidade lhe tenha subtraído um pouco da leveza. O pai, afinal, precisa mostrar a solidez de um guardião.
Contraídos no espaço mais junto ao prédio, de alguma forma eles se divertem em resposta ao som invasivo que amplifica as batidas dos corações. Nas estocadas em ritmo pesado na calçada poderiam sentir um pouco do seu tempo livre deslizando em meio a tanta gente desconhecida.
A dança acaba, o menino volta aos braços da mãe, o pai começa a andar embora. Vai a família, na mesma paz em que chegou.
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foto: detalhe da avenida Paulista, na região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda
A despensa está quase vazia, como a geladeira. Faltam escolhas para o dia, mas tanto faz. Mais trabalho seria encher as prateleiras, colorir de intenso as portas que se abrem. Mais doloroso, talvez.
Os restos ainda estão inteiros e é com eles que continuo a contemplar o espaço imenso entre o esquecimento e os sabores em dissolução.
:: foto: fábrica abandonada no bairro da Mooca, zona centro-leste de São Paulo, por Ricardo Imaeda
[ao som de ‘Bird on a wire’, de e com Leonard Cohen]
Pode ser apenas por mais alguns minutos, enquanto não saem de cena as imagens de um passado de uma outra pessoa. Afinal, parece isso: qualquer outra pessoa, quase totalmente desconhecida. Os fantasmas são dela, os sofrimentos, memórias, e alegrias talvez.
Essas não são bem invenções de alguma noite sem televisão ou rádio. Quem não pensou nem falou sem sentir deixou a rua deserta, em noites sem comemoração. Deixou portas fechadas a leves toques. Com muitos segredos estocados querendo pular. E ainda não contente, espremeu o tempo que restava em pé para caprichar nos desenhos que guardaria ao fim de mais um dia.
Olharia para tudo com pouca sede, pouca esperança. Na desordem que o passaria para trás, como todas as outras vezes. Fecharia de novo as portas, sem encontrar os retalhos nada mais. No que vagaria passos sem ritmo nem voz, no que tocaria fundo cada nota da música que jogaria terra a seus pés.
[Ouvir Leonard Cohen na coletânea da série ‘The essential’ é partir para um encontro com aquele amigo que nunca se vai ter. Que o abraça na compreensão iluminada, que o reconhece e faz viver]
Quando se estuda não se cria, ele pensa. Afinal, toda vez que está imerso em um curso é como se as vias se obstruíssem, a expressão calasse. Mão única para receber ou a vigía exagerada na crítica de si mesmo. O olhar se espalha na multiplicidade do que parece não caber mais no trabalho que se fazia. Oficinas demais, tentativas paradas.
Existem os outros, é verdade. Que absorvem, que não entendem. E também compõem, com seu passo, um corpo estranho no seu drama.
Volta aos seus mesmos conhecidos enquanto a crise não o espreme. Um parco legado de rascunhos que caminham.
:: foto: interior da igreja Nossa Senhora Aparecida, na avenida Brasil, na zona sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Mal chego à outra margem percebo que há novos trechos para atravessar. E mais outros. Parece a vida rodando de um jeito que me desacostumei de ver. É ela mesma ou terá alguma coisa mudado? Mas chegou a hora de desembarcar. Ou será melhor seguir, contornando os terrenos alagados?
:: foto: lago do Guarapiranga a partir da barragem norte, na zona sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Início de quarto ano. Continuação de percursos pela cidade e pelos intrincados caminhos da existência. Quando embarcar não traz nenhuma segurança de encontro ou partida. Muitas paisagens podem até ser familiares. Mas quem as contempla deve ter mudado a cada vez. Assim como os textos, um pouco repetidos, tão diferentes.
:: foto: interior da estação da Luz, na zona central de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Quando os problemas atordoam de não mais caber, quando os derradeiros atropelam o que ainda não surgirá talvez uma forma de conseguir lidar com isso seja desagregar, separar. Decompor os vários pedaços que tendemos a juntar quando desaba a tempestade. Cada fragmento parecerá menos ameaçador, possível de enfrentar.
Mas também pode ser benéfico criar novas áreas de interesse, multiplicar as pontes com o universo ao redor: escrever, cantar, conhecer outras pessoas, aguar as plantas... Tocar em mais balõezinhos, que podem nos alçar de volta para cima da superfície.
[Para um amigo em dificuldade]
:: foto: pôr do sol a partir do bairro do Pacaembu, zona central de São Paulo, por Ricardo Imaeda
É como andar sem óculos, precisando deles. Lá estão as coisas, mas também a incerteza. Os caminhos, mas os engasgos. Entre o olhar e o gesto há um tempo para deter ou soltar. E seguir.
:: foto: detalhe da praça Victor Civita, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, captado por câmara artesanal Pinhole, feita em caixa de fósforo, por Ricardo Imaeda
É viver a incerteza como único chão. Com seu movimenta contínuo, sem sentido, sem canções. Encher o balde que poderá verter a qualquer instante sem saber e sem lamento. Ou, ao contrário, com a voz no limite do protesto e da dor.
É um fio extremo de estreiteza, mas de largadas ilusões. Que se tateia com receio quase fuga, e se agarra para evitar quedas antecipadas. E que se esquece a cada possível alegria.
É suspenso a baixa altitude, medo controlado. Em cada novo olhar o mesmo piso mais perto, e perto se perde qualquer via de escape.
Mas também é atentar para detalhes que antes passariam despercebidos. Para o que não significava. E agora passa a viver.
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[‘bardo’ é um termo tibetano para os estados intermediários, transitórios, como a vida, o período de passagem entre a vida e a morte, e a própria morte]
:: foto: estação-ponte Santo Amaro do metrô, a partir da estação de trem de mesmo nome, às margens do rio Pinheiros, na zona sul de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Desço lento a Augusta, passo pela frente do Vegacy, do Cinesesc, das galerias do lado ímpar. Não importa por onde, o movimento realimenta o caminho. Estou com o vento. Estou no vento.
Desço a Teodoro devagar, sem ponto de chegada. Quase tropeço nos ladrilhos mal soltos, quase me atrapalham. Mas vou pelos passos como se fosse vento, na ausência de qualquer sentido.
Ando como se nada mais importasse, agora que as calçadas se estreitam, ando. E ando com montanhas e aves, florestas e vales, em plena cidade.
Com o vento. Com toda essa companhia para quem sou parte, e não deixo rastros.
[Augusta e Teodoro Sampaio são duas ruas comerciais muito conhecidas na cidade; Vegacy é um restaurante e lanchonete vegan]
:: foto: trilha da nascente do rio Ipiranga, no interior do Jardim Botânico, na zona sudeste de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Algumas coisas existem, quer se acredite quer não. Exercem uma força de arrasto mesmo que se procure ignorar. Uma espécie de magia sem movimento. Elas estão contra, durante noites e claros.
Não são fantasmas nem naves desconhecidas. Mas atormentam com sua presença, tanto mais sentida quanto mais negada.
E para quem precisa continuar (ou apenas teme partir) essas coisas funcionam como memórias alteradas. Criam uma imagem parecida, mais sombria, do que foi; mais incerta, final, do que pode aparecer.
Talvez por conta desses freios aquele que caminha começa a inventar. Inventar amigos, enredos, lugares. Essas outras coisas que o amparam, mas também não existem.
[ao som de ‘Mysterons’, de G. Barrow, B. Gibbons, A. Utley, com Portishead]
:: foto: grande auditório do parque Anhembi, na zona norte de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Respira. As estimas se evaporaram. Os sabores se perderam. As letras intermitam. Mas o vazio foi recuperado. O vazio em que me reconheço, cada pequeno fragmento.
:: foto: detalhe do lago das carpas, no núcleo Pedra Grande do parque estadual da Cantareira, zona norte de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Tento lembrar a letra daquela canção, tantos anos atrás, enquanto caminho lento, sem origem, quando também não havia futuro. Nada além de sobrevida. Um dia a cada falta de mês.
‘And I know it’s over – still I cling I don’t know where else I can go I know it’s over’
Outono agora. Como fazer para chegar até a outra margem?
[ao som de ‘I know it’s over’, de J. Marr e S. Morrissey, com The Smiths]
:: foto: panorâmica litorânea da cidade de Santos, por Ricardo Imaeda
Por muito tempo ele acreditou e abraçou mesmo a necessidade de ter um plano B, com inúmeras variantes para o caso de alguma ameaça sobrevir. Os dias se foram com distrações e apagamentos. Então se esqueceu. Como não havia anotado teria de pensar novamente, criar outra vez roteiros de escape. Mas com muito menos vontade e energia. Peso da idade, talvez, cansaço, indecisão.
Agora quase não existem mais sinais externos. É como se os sons da vida tivessem saído sem tocar na porta. Que não se consegue mais abrir, esforços enfraquecidos.
Do esquecimento não resta nem um começo.
:: foto: detalhe da fachada do edifício do antigo Banco de São Paulo, projeto de Álvaro Botelho, em art déco, atualmente sede da Secretaria de Juventude, Esporte e Lazer, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda
Gostaria de ler sua sugestão ou comentário. Se preferir, escreva direto para mim. Será um prazer começar uma nova amizade ou apenas compartilhar palavras e significados.