Wednesday, June 18, 2008

E o navio vem

[ao som de ‘Silk road’, de Kitaro]


Dois meses no mar o afastam.

Nenhum brinquedo talvez o acompanhasse dentro do navio. Talvez apenas ele mesmo, reduzido a peça de contemplação nos dias e dias através de três oceanos. E cada vez que o ponto de partida se distanciava era o que vinha a ganhar espaço. A família inteira em movimento, feito parte no desconhecido.

De norte a sul, primavera em outono, as palavras devem ter escasseado. Racionado, como o alimento da busca, na espera do que nem se saberia. Mas outro seria o mundo que afinal estaria crescendo como ele, nas promessas que tanto teria ouvido. São Paulo. Café. Terra, como essa por que transita tão lenta e fracionadamente.

Terá avistado o porto ao anoitecer, na vizinhança do sono e do susto. Talvez os primeiros passos tenham estranhado o menino, seguro em um caminho que o reconheceria de outra forma, adulto, quando o descanso finalmente tomaria a vez do trabalho. Sua história estaria apenas no início quando então desaparece dos registros.

Encontro seu nome agora na lista de embarque, tantos anos depois. Apenas o nome, as datas de partida e chegada, o navio.

Não é muito, mas o faz chegar.

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in memoriam: F. I.
75 anos após o desembarque em Santos
28 anos após outro embarque

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foto: escultura de Tomie Ohtake em homenagem às quatro gerações de imigrantes japoneses no Brasil, na avenida 23 de maio, em frente ao Centro Cultural São Paulo, por Ricardo Imaeda

3 comments:

Anonymous said...

Ricardo, que beleza. Fiquei muito emocionada. La nave va.
Beijo,
Anaelena

Unknown said...

Lírico,tocante... Atravessa os sentidos, por mares já navegados, na distante paisagem de estações que se entrecruzaram. Primavera em outono: flores e folhas pelo nosso caminho, em busca da promessa de frutos, grãos, tulhas...
E que percorramos juntos muitas estações, bebendo café à espera do trem...
Beijos
Márcia
P.S Que bom que F.I. veio e, com ele, tempos depois, trouxe R.I.

Nelson said...

Oi Ricardo,

Emocionei-me ao ler este post. Fez-me lembrar do meu próprio pai.
Recentemente aprendi uma palavra em japonês que parece definir um pouco este sentimento bittersweet (existe tradução de bittersweet para o português? Meu Deus, estou esquecendo as palavras): anyway, a palvra é 'setsunai'.
É uma dessas palavras como 'saudade', difíceis de serem traduzidas e que pode ser usada num monte de situações, mas um amigo japonês me disse que ao lembrar da avó dele que se foi há muito tempo ele sentiu 'setsunai'.
Abraço,
Nelson