[ao som de ‘You’ll never walk alone’, de R. Rodgers e O. Hammerstein II, na voz de Ray Charles]
Faz tanto tempo que não nos vemos que cada segundo repartido quero expandir; qualquer gesto, calcar; e nas palavras entender a verdade. Temos tanto para conversar, retomar de um ponto suspenso há anos, lembro bem. Nem me ocorre mais sobre o que falávamos tanto, tão pouco, tentando conter o tempo que estirava. Chegará e não sobrará tempo. Então o desespero suprirá todos os atalhos, vias de acesso, pavimentos de vista e fala. Temos tanto para atualizar. Mas só a eternidade poderá conter meus saltos no percurso de um abraço. Que não mais se concretiza, não mais se contrapõe.
Quero te ver não como se fosse um reencontro, mas uma despedida.
:: foto: pinheiros no átrio do templo Zu-Lai, em Cotia, São Paulo, por Ricardo Imaeda
[ao som de ‘Tajabone’, de Ismael Lo, um dos temas do filme ‘Tudo sobre minha mãe’]
Assim, no centro, você passeia como se estivesse livre. Nenhum dia a mais pela frente. Desatou os fios da rede, apagou o passado um a um. Não apenas memória. Foi quase um renascimento sobre as pistas antes tanto trafegadas. Sem plano B ou qualquer gesto dramático. Apenas um caminhar descompromissado.
E assim você passa, os outros mais acertados do que sempre, lentamente passa.
:: foto: detalhe da praça Antonio Prado, com vista para o início da avenida São João, no centro de São Paulo, por Ricardo Imaeda
[ao som de ‘Time after time’, de C. Lauper e R. Hyman, com o trompete de Miles Davis]
É como num filme. A cena parada, eles descem à avenida no início da noite de um domingo e andam, andam, na lentidão de quem não busca. De cada passo recolhem o eco, o peso de um dia. Que ainda está lá, largado em algum canto com a pressa da cidade, e esvazia.
Escurece mais. Nos seus riscos eles a abandonam. Como a um plano, um passado.
:: foto: anoitecer sobre a avenida Paulista, em direção a oeste, por Ricardo Imaeda
[ao som de ‘White sandy beach of Hawai’i’, de e com Israel Kamakawiwo’ole]
:: [para todos aqueles que perderam a paixão pela existência]
Ao longo de séculos os antigos polinésios desenvolveram a arte de navegar pelo imenso oceano Pacífico. Sem bússola ou outros instrumentos, eles se guiavam pelas estrelas, vôos dos pássaros e diferenças na qualidade das ondas e dos ventos. A aguçada sensibilidade às mudanças na paisagem surgiu não apenas da necessidade, mas também do desejo de conhecer novas ilhas. Fosse grande o temor, a paixão da descoberta fazia mover os velejadores.
Em terra, na atualidade, as possibilidades de se perder parecem ser bem menores. Mas a sutileza dos pisos engana o andarilho. E a enorme diversidade dos ambientes funciona mais para entreter e confundir do que para orientar. Mal a sobrevivência se manifesta, os pássaros batem asas e decolam para não mais.
Chega um tempo em que não parece haver encontro que justifique uma perda. Nem perda que signifique uma vida.
:: foto: vôo de garça por sobre um dos lagos do parque Ibirapuera, em São Paulo, por Ricardo Imaeda
[ao som de ‘Amazing Grace’, de domínio público, na voz emocionante de Judy Collins]
Depois de muito tempo descobre uma voz. Aquela que, por alguma característica especial no timbre, lhe toca profundamente. É como se ela abrisse portas de outros planos de consciência. Ou apenas oferecesse um bálsamo de compreensão nessa hora dividida.
No canto ela figura uma paz que lhe escapa. É hora de desistir, talvez. A mudança é esforço demais para o tempo de uma vida.
:: foto: crepúsculo a partir do terraço do Sesc Avenida Paulista, por Ricardo Imaeda
De outros cansaços se fazem os dias. A sensação de ter chegado ao fim de uma longa subida, agora diante de um penhasco, sem força mais para escolher qual rumo seguir.
De outras decisões se fazem os caminhos. A impressão de ter faltado luz nas horas certas, enquanto o piso amolece com a incerteza dos passos.
:: foto: detalhe do vale da avenida Nove de Julho, região central de São Paulo, por Ricardo Imaeda
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