Thursday, June 14, 2007

Sabores artificiais

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O rapaz entra no ônibus e começa a falar seu texto decorado. Cada nova frase sai aos borbotões, tão automática quanto linear. Não há diferença nem vírgula, ênfase ou intenção. Tudo soa a impostura. Mas é assim, na armadura desse papel, que ele cumpre seu rito.

Se há incômodo, também redenção pela legitimidade do trabalho honesto. Todos sofrem por uma informalidade forçada, intrometida, sem licença ou qualquer esboço de convite. Informalidade do serviço na formalidade do discurso na informalidade da chegada. Parece ainda pior no fardo de quem vende, subindo e descendo sucessivos degraus, atropelos, corridas sem freio, quase batidas.

E então vêm os produtos: balas coloridas, gostosas, a preços de ocasião. As cores são ainda mais vivas do que naturais. E sabores: limão, abacaxi, morango. Nem dá para lembrar de todos. Mas não há muitas ilusões para quem compra, mesmo porque o que se quer é a sensação do doce. Até parece limão. Quem se distrair, quando se distrair, terá uma satisfação de limão. Entre um momento e outro, do saber e do acreditar, haverá paisagens na janela, cansaço, muitas falas cortadas, abafamento, outros vendedores.

Os sabores artificiais são pequenos disfarces, dentro dos quais tantos se encontram e se contentam. Lembram dos verdadeiros e estão mais ao alcance. Quase sempre são mais baratos. Enganam sem ferir. E fazem crer no que se sabe não valer.

[Sabores artificiais sobrevivem e se realimentam em crenças políticas e religiosas, relações organizacionais e familiares, academias e tantos outros lugares]


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2 comments:

douglas D. said...

Estava viajando, Blumenau. Por isso a demora em responder. Agradeço a tua visita. Gostei bastante dos teus blogs; das fotos, em especial. Há algo de silencioso nelas...
abs.

Anonymous said...

texto muito bom
extremamente poético
sensacional