Friday, March 30, 2007

Sem mesmo ser


Foi um convite do pai: um passeio. Fato raro. Por isso mesmo desconfiou que havia alguma razão encoberta, alguma revelação dramática a se materializar na conversa. Com o espírito assim preparado caminhou sempre meio passo atrás. Talvez não fosse apenas o excesso de trabalho que o afastava. Nem mesmo os anos de estudo que o levaram tão longe na mesma casa. Mas algum segredo. Seu silêncio gotejava sem estancar.

Ainda vasculha as trilhas por que passaram em busca daquelas palavras.

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[ao som de ‘Até quem sabe’, de João Donato e Lysias Enio, na extraordinária voz de Rosa Passos:

‘agora vou pra onde for sem mais você
sem me querer, sem mesmo ser, sem me entender
... vou me perder pela cidade
até um dia, até talvez, até quem sabe
...até você sem fantasia, sem mais saudade’]

Wednesday, March 28, 2007

Bons lazeres

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Cada qual pode extrair lições de auto-ajuda ou bem-viver das mais improváveis fontes. De histórias em quadrinhos a bilhetes em biscoitos da sorte. Mas também de onde mais se espera: dos livros de sabedoria. É verdade que eles às (muitas) vezes podem ser desconcertantes, principalmente quando vêm de contextos sociais e históricos muito distantes. Ao ler Lie-Zi me deparo com a seguinte recomendação:

‘...Dessa forma, nem pobreza nem prosperidade são desejáveis. Então, que é preciso desejar? Uma vida alegre com horas de lazer, pois boas alegrias afastam a pobreza e bons lazeres afastam a prosperidade.’

Parece razoável. Uma exemplificação do caminho do meio, um antídoto contra a ética do workaholism. Mas como conceber que a alegria possa espantar a privação material? Ou mesmo que o lazer implique a deserção da riqueza?

Na tradição Tao o conhecimento deriva da observação da natureza. E, de forma paralela, da observação da experiência de outros humanos. Não se pretende um valor de verdade nos moldes da lógica ocidental. Assim, é como se vissem ações que parecem correr em pistas totalmente diferentes mas que se mesclam ao produzir um resultado na vida, que afinal é una. Que só tem a ganhar quando se faz tanto lúdica quanto aprazível.

Trivial a ponto de ser senso comum?

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O fragmento de Lie-Zi está em ‘Tratado do Vazio Perfeito’, publicado no Brasil pela Landy Editora

Saturday, March 24, 2007

As cores que persistem


Quem vier a São Paulo vai encontrar belas exposições de arte. Em uma delas é como se desembarcasse em Santiago, Chile. As principais obras do acervo do Museo de la Solidaridad Salvador Allende estão na galeria de arte do Sesi, na Avenida Paulista. Se a história de criação e sobrevivência desse museu já carregam virtudes, ideais de liberdade e justiça, as obras se desprendem em beleza.

Não há uma unidade de estilo ou direcionamento temático, produto que foram de doações individuais de artistas de todo o mundo. Geometria, efeitos ópticos, abstrações, figurativismo, surrealismo. Estão todos lá sem brigar. Muita cor mesmo em tempos sombrios. Gravames em linhas suaves. Alguma coisa tensa que insiste em deixar testemunho em dias de concórdia duramente trabalhada.

Olhar para essas obras faz sentir um pouco daquela força original que reaparece de vez em quando e continua sem se saber como. Um braço que se estende na tormenta. Uma voz em meio ao abandono.

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foto: detalhe do folheto da mostra, com reprodução de obra de Gracia Barros

Sunday, March 18, 2007

Promessas no ar

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De dentro do ônibus no Fura-Fila a cidade parece ainda mais obscura. A via elevada trafega por sobre o vale do rio Tamanduateí, em meio a galpões industriais e ao acúmulo de construções decaídas. Não há horizontes agradáveis nem convidativos. O trajeto parece confirmar a impressão de um caminho de obrigações e necessidades. Nem a cor amarela da estrutura anima muito o passageiro. A velocidade é pouca. Só se quer chegar.

Mas em algum ponto, entre a Vila Prudente e o Ipiranga o cheiro de bolo recém assado invade o veículo e toda a redondeza. Será de alguma fábrica? Alguma padaria? O aroma é forte e condutor. Faz imaginar os doces de uma paz culinária, embrenhada em um passado suave. Fornos e mesas, pães e biscoitos. Um chá da tarde, café, visita amiga. Esse cheiro intenso deve ser mais gostoso do que o próprio sabor. É a única força que desvia o ônibus de seu roteiro de inospitalidades.

Procuram em vão pela origem do cheiro, do bolo. Eles são de todo inalcançáveis. Não estão apenas fora do ônibus. Eles passam.

Monday, March 12, 2007

Na próxima parada


Essa deriva me mata. A incerteza do que vem, de onde, como. Saber se um dia vem. E entanto é assim, com esses altos e baixos, por essas ondas irregulares que atravesso os dias.

Essa deriva parece liberdade. A tantos que parecem mais aprisionados, em servidões voluntárias ou contingentes. Para quem não saber já é um ganho. O indefinido contra a inércia do sempre mesmo.

Mas é assim, o mal-estar contínuo na civilização. Deslizes com muitos enjôos, anestesias com tantos trancos.

É se equilibrar dentro de um ônibus mal dirigido. E não deixar passar o destino.

Thursday, March 08, 2007

Chuvas são quitações de dívidas

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É muito difícil ler Beckett.

Não pela construção das frases, tão límpidas e diretas na sua concretude. Mas pela atmosfera: um misto de rarefação e densidade, que repesa a cada nova pausa. As cenas são cotidianas e quase nada acontece em seus textos. Ninguém parece saber o que vai sobrevir e, no entanto, segue com sua rotina sensabor. E é essa insipidez o que afasta. Não se quer o que não se apresenta ao gosto.

Mas, ao mesmo tempo, é esse autor que tão bem captou o abismo, a deliqüescência do que foi humano. Do que patina insosso e não grita mais porque se esgotou a energia ou a conformação já rasteja altaneira.

Nesses dias de aridez há espelhos demais. Todo grão de areia parece vitrificado. Ofuscante. Inclemente. Faz clamar por qualquer chuva.

Monday, March 05, 2007

Equivalências

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Tudo o que é fácil é falso
Mas nem se sempre se faz tudo
Daquilo que se quer uno

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Assim, feito foto e negativo, cada um para o seu lado, perdidos um do outro. Imaginam destinos diversos, se acham sem par. Mas voltam como alvos de busca conjunta quando se quer mais.

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